sábado, 27 de agosto de 2011

As vacas sagradas evangélicas 3

Na cidade americana de Newark, em 2008, um grupo de voluntários se dedicou a pedir a Deus que cuidasse da cidade. Segundo a Harvest Evangelism, ministério que organizou a campanha, 100% da cidade foi visitada pelo grupo, que se intitula “Pray For Newark” (“Oração Por Newark”). Em março de 2010, as mais de mil ruas tiveram seu primeiro mês sem homicídios desde 1966: resultado da intervenção divina?
Mas no final do ano um corte de despesas levou à demissão de 167 guardas municipais. O resultado: até o meio deste ano,  segundo a rede de TV CBS os homicídios cresceram 71%, os tiroteios 29% e o roubo de carros quase 40%. Os resultados alegados pelo “Pray For Newark”, de repente, parecem ter evaporado.
Certo pastor deu um depoimento curioso em seu site. Afirma que o Espírito Santo lhe disse, segundo Jeremias 19, para ir à câmara de vereadores da sua cidade, fazer uma convocação de arrependimento. Segundo diz, Deus queria um profundo arrependimento na vida dos vereadores e na cidade, e caso não fosse atendido, Deus iria quebrá-los como o profeta quebrou uma botija em Jeremias 19:11. Fizeram uma oração e quebraram a botija, como Jeremias.
Passado algum tempo, um grupo de pastores foi ao presidente da Câmara e “entregou a mesma palavra que o profeta Jonas entregou ao Rei de Nínive”, chamando-o e à cidade ao arrependimento, para que o juízo não viesse e sim a bênção. Entregaram a chave da cidade para Jesus e confessaram os pecados da cidade; mas, “como não houve arrependimento nem do Presidente da Câmara, nem dos vereadores, nem da cidade, o juízo entrou em operação”: promotores começaram a investigar vereadores e alguns foram presos, uns afastados e outros perderam o mandato. Chuvas e tempestades causaram rachaduras no prédio da Câmara, a ponto de ser interditado. A Câmara foi “quebrada”, diz relato do pastor; a chuva arrancou, fez cair ou torceu muitas árvores da cidade, mostrando as suas raízes - Deus disse que estava agindo com juízo para trazer a luz as raízes de iniquidade.
O pastor conclui que “o ato profético realizado trouxe a vontade de Deus à existência. Seria bênção com a prática de arrependimento ou juízo com a prática de negligência ao arrependimento. Como não houve arrependimento, veio o juízo”.
Ciro Zibordi relata que “uma famosa intérprete do chamado mundo gospel, num ‘ato profético’, andou como um animal quadrúpede em cima de um palco (foto ao lado), como se fosse uma leoa. A mesma cantora e seu grupo, em um mega-show, no Rio de Janeiro, apresentou um deprimente espetáculo em que um rapaz representou o Diabo, enquanto ela o pisava ‘profeticamente’ ... acompanhada de dançarinos que poderiam, sem exagero, fazer parte dos shows da Madonna, da Britney Spears ou da Beyoncé. Há alguns anos, seguidores de um grupo ‘evangélico’ resolveram, também num ‘ato profético’ ao extremo, escalar e ungir o Dedo de Deus, na Região Serrana do Rio de Janeiro. Segundo eles, esse pico é um chamariz da presença de Deus. Além disso, bem próximo dele há outro que, de tão parecido, chega a se confundir com ele — a Agulha do Diabo, que também precisaria ser ungida. Com isso, declararam ‘profeticamente’ que o Rio pertence ao Senhor e que toda ação diabólica foi quebrada!”.
Pergunta Zibordi: “Melhorou alguma coisa no Rio de Janeiro depois desses ousados ‘atos proféticos’? Do jeito que o Diabo foi supostamente pisoteado e humilhado, diante de milhares de pessoas, no mínimo ele estaria fora de combate, mas o Inimigo continua bastante atuante, não só em territórios fluminenses, como em todo o mundo. E quanto às unções do Dedo de Deus e da Garganta do Diabo, que resultado trouxeram?”
Há vários outros relatos semelhantes, cujas conseqüências são, no mínimo, inconclusivas. Não há como ter certeza de que o que aconteceu, aconteceu por causa do “ato profético”. Por exemplo, no ano 2000, houve grandes mobilizações para declarar que “o Brasil é de Jesus”, que haveria arrependimento pelos 500 anos anteriores de escravidão, corrupção e outros males, e que dali para a frente o País seria outro. Bem... de lá pra cá não sei se houve melhora. Continua a corrupção (não sei quantos mensalões de lá pra cá), a exploração econômica, a decadência moral, os crimes sexuais, o roubo... e até entre os cristãos isso tudo tem aumentado.
O que deu errado?
Segundo seus adeptos, “o ato profético é feito mediante uma profecia, ou seja, diz que algo vai acontecer e um ato demonstra tal acontecimento, vindo da parte de Deus irá acontecer. Tudo aquilo que fazemos nesse plano físico (atos ou palavras) resulta no plano espiritual. Atos proféticos são sinais que apontam para o reino espiritual que resulta no reino físico. Atos proféticos são orações representadas por atitudes e palavras. Palavras proféticas são aquelas de afirmação, de certeza do que ainda não aconteceu e conclusivas, o que difere das orações de petição, agradecimento, intercessão, batalha, etc”.  
Afirmam ainda que “Adão e Eva se cobriam com folhas de figueiras, que simbolizam a Israel que não consegue cobrir sua nudez e depois Deus os cobre com pele de cordeiro, o que simbolizava Jesus, o Cordeiro que cobre a nossa nudez, ou seja, o nosso pecado (transgressões)” - (Nota: já começou errado: se a nudez de Adão e Eva simboliza Israel, os gentios estariam isentos da condenação?...), e que “Jacó teve o seu nome mudado por Deus em uma atitude profética, como sinal, de que seria a sua descendência o povo escolhido por Deus, pois Jacó quer dizer ‘usurpador’ ou ‘enganador’ e o novo nome dele passou a ser Israel que quer dizer “Povo de Deus”. Deus mudou a identidade de Jacó e conseqüentemente mudou toda a sua história”. (Nota: Israel significa “o que luta com Deus”... continuam os erros).
Prosseguem relatando o que entendem por “atos proféticos”:
Deuteronômio 11:24-25 e Josué 1:3 e Juízes 3:13, plantas dos pés conquista os territórios. Isaías 62:10 e Números 1:52, bandeiras que demarcam os territórios como conquistados. Josué 6:4, Toque do shofar e marcha rodeando o local a ser conquistado. Êxodo 15:23-25, Moisés lança uma árvore nas águas amargas e as torna doce. II Reis 2:21, Eliseu derramou sal na cabeceira do rio, que transbordou. II Reis 4, Eliseu ordenou que a viúva pedisse vasilhas para o azeite e Deus operou um grande milagre. Malaquias 3:10-12, dízimos para se proteger do demônio Devorador e oferta para prosperar. Marcos 10:39, batizar em águas. Marcos 10:44, servir, ser submisso, ser liderado, para
liderar e governar.  Marcos 13:14, designar 12 para estar com o líder. Marcos 13:10, pregar o Evangelho em todos os lugares. Atos 6:6 e 19:6 e Hebreus 6:2, imposição de mãos. Tiago 5:14-16 e Isaías 10:27, unção com óleo (já explicamos aqui que a unção é coisa séria e a de Tiago não tem nada a ver).
Mais exemplos bizarros, quase todos tirados do Velho Testamento:
Profetizar contra os montes (Ezequiel 6:1-3), bater com as mãos e os pés (6:11), gritar e uivar (21:12); gravar marcos nas entradas da cidade (21:19), enterrar e desenterrar cintos (Jeremias 13:1-11), golpear a água com manto (II Reis 2:8,13-14), marchar gritando em círculos (Josué 6:1-20), dar voltas nos quatro cantos da cidade, contar suas torres (lugares fortes) e observar bem suas defesas (Salmo 48:11-12), deitar na terra confessando pecados e profetizando 
(Ezequiel 4:4-6); bandeiras como símbolos de uma nação ou região (Isaías 13:2, 18:3), proclamar a Palavra aos montes, vales, pedras, árvores ou animais (Ezequiel 36:1-15), lançar ou espalhar sal em pontos estratégicos para firmar pactos (Levítico 2:13; II Reis 2:21-22; II Crônicas 13:5), derramar azeite e vinho sobre lugares específicos (Levítico 8; Gênesis 35:12-14), arco e flechas, facas, espadas (II Reis 13:14-19), danças proféticas (Êxodo 16:20-21; II Samuel 6:14-16), toques de shofar (Josué 6:2-16)... e outras coisas que tornam a Bíblia um verdadeiro manual de feitiçaria! Misericórdia!!! Se quiser ver mais, clique aqui e prepare-se para sentir o estômago embrulhar. Eu senti vontade de vomitar (sobre dança profética, falarei em breve, em outro post).
Tem mais: Pedro pescou 'profeticamente' um peixe com o dinheiro na boca (Mateus 17:27), Jesus tocou os olhos dos cegos (Mateus 9:29), cuspiu diretamente nos olhos do cego e o curou (Marcos 8:23-25), ordenou que os pescadores lançassem a rede do barco para pegarem os peixes, mesmo que não haviam pego nada (Lucas 5:4-6), parou o enterro, tocou no esquife e ordenou que se levantasse o jovem morto (Lucas 7:12-15), colocou as mãos sobre a mulher encurvada que passa a ser curada (Lucas 13:13),  ordenou que os dez leprosos fossem mostrar aos sacerdotes, e nessa ida profética, foram curados na caminhada (Lucas 17:14), mandou encher de água os vasos e os transformou em vinho no casamento (João 2:7-9)... e por aí vai.
Praticamente todo e qualquer milagre é relacionado a um “ato profético”, e depois de citarem inúmeros exemplos forçados, terminam dizendo que “a Santa Ceia do Senhor é o maior ato profético da história, que representa a morte e ressurreição de Jesus”!
O espaço está acabando e vamos ter que continuar depois, mas creio que já deu para notar os exageros desse pessoal, para quem praticamente tudo era “ato profético”, e por isso é lícito fazermos o mesmo.  Só que hoje tem tanta coisa chamada de “ato profético” que não há diferença nenhuma das simpatias, macumbas e derivados. Penso que está configurada a falácia: dizer que o batismo nas águas é um ato profético e “designar 12 para estar com o líder” é profético, só pode ser brincadeira ou ignorância. Isto de ser tudo profético é a base do movimento G12, nada mais que um método para crescimento de igrejas. Citar Malaquias como amuleto anti-falência... bem, eu só peço que clique aqui,  aqui e aqui para saber o que eu penso disto. “Ser submisso para liderar e governar” é dominionismo da pior espécie.
Esses erros grosseiros não explicam o porquê do não-cumprimento, por exemplo, do que foi feito no “aniversário” do Brasil, nem por que a criminalidade voltou a aumentar em Newark. Brasília, por exemplo, deve ser a campeã em ato profético. Tem melhorado a atmosfera na capital? E no caso relatado da Câmara dos Vereadores, se eles tivessem aceito a proposta dos pastores a corrupção não teria sido revelada? O que tem a ver as árvores derrubadas na tempestade com Deus revelar as “raízes da iniqüidade”? É preciso cair uma árvore para se saber qual é a raiz da iniqüidade?
Eu penso que a Bíblia tem as respostas. A Palavra aconselha em Deuteronômio 18:22, que “Quando o profeta falar em nome do SENHOR, e essa palavra não se cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o SENHOR não falou; com soberba a falou aquele profeta; não tenhas temor dele”. 
Posso até estar pegando pesado, mas precisamos destruir logo essa falácia que vai, aos poucos, se enraizando na Igreja e se transformando em mais uma “vaca sagrada evangélica”. Se demorarmos a agir nesse sentido, pode ser tarde demais, pois o que está por trás desses “atos proféticos” é grande e poderoso, como mostrarei na semana que vem.
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