O tempo passou.
Dilma Rousseff está destituída do cargo de Presidente da República. Sem
que Deus fosse usado como “fiador” de uma mudança necessária por exigência da
ética, da moral, dos bons costumes e da ordem, muito provavelmente, todo o
embate ético-político que se arrastou desde o auge do poder de Eduardo Cunha na
presidência da Câmara até agora, com a queda definitiva de Dilma, não
aconteceria – ou poderia ter outro fim.

A esquerda política brasileira nunca fez
questão de justificar suas escolhas, objetivos, programas e projetos a partir
de “Deus”. A “presença de Deus” na esquerda no Brasil (assim como em toda a
América Latina) sempre se deu via movimentos como a chamada Teologia da
Libertação católica ou via teólogos protestantes progressistas. Para a direita
e o campo conservador, Deus é central. Ele é o legitimador de todas as disputas
que eles empreendem.

É preciso ter nítida a ideia de que se
está “do lado de Deus” para, mesmo sabendo que se está tão comprometido na Lava
Jato quanto qualquer parlamentar petista, condenar as ações de parlamentares do
PT ou mesmo vociferar sobre ética e moral contra Dilma Rousseff – ainda que ela
não esteja envolvida.
Se o parlamentar fala em nome de Deus (leia-se
da sua relação com a igreja), é irrelevante que a sua trajetória política o
desqualifique nitidamente para reivindicar a ética, a justiça e a moral. Quando
você diz defender os valores “instituídos por Deus”, você pode dizer, por
exemplo, que luta para que o Brasil não se torne uma Venezuela ou não seja
tomado pelo “bolivarianismo” sem precisar explicar absolutamente nada sobre o
que isso significa. É certo que o
debate do julgamento para o impeachment está quase restrito ao
campo da gestão e da economia, mas parece ser mais fácil impedir que o acusado
reaja quando quem acusa está blindado pela imagem de quem está “do lado de
Deus”.

Uma igreja negra nos
Estados Unidos foi determinante para forçar o fim da segregação racial, enfrentar
o Estado e abrir caminho para a conquista dos direitos civis dos negros, e,
consequentemente, ampliar o caminho em direção para a garantia dos direitos de
outros grupos sociais. Uma igreja negra na África do Sul, com Desmond Tutu e
Allan Boesak à frente, foi determinante para forçar o fim do apartheid e
fortalecer a luta que tinha Nelson Mandela como a figura principal. Em ambos os
países, a igreja se tornou o refúgio de negros perseguidos, sem direitos, local
de sua formação, autonomia e empoderamento.
A escolha dos cristãos negros e
negras do sul estadunidense era transitar entre a não violência, proposta e
defendida pelo Dr. King, e o apoio integral às ações enérgicas do movimento Black Power, às ações
dos Panteras Negras, libertação da ativista Ângela Davis. A igreja
negra na África do Sul e seus teólogos apontavam para a violência de
Estado em Soweto. Tanto nos Estados Unidos quanto na África do Sul, o “Deus”
reconhecido pela Teologia Negra (bem como
pelas igrejas alinhadas com a Teologia da Libertação na América Latina) era
aquele do êxodo do povo vindo da escravidão no Egito, liberto na travessia do
Mar Vermelho, que se identificava com os homens e mulheres negros escravizados
pela Europa e nos Estados Unidos e com os todos os pobres na era
pós-escravocrata.


Artigo
publicado originalmente em The Intercept Brasil, 2 de setembro de 2016
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