Eu teria ficado para trás, porque me distraí vendo todos
os jogos de futebol que pude. Afinal, é empolgante assistir a toda a movimentação das
torcidas antes, durante e depois dos jogos; ver os comentários dos mais
abalizados jornalistas esportivos, e os palpites dos zé-manés que passavam pela
rua, doidos para aparecer na televisão. Os vitoriosos comemorando e os derrotados chorando. A torcida aplaudindo e a torcida vaiando. Ah, sim, e também as análises dos
entendidos depois, até tarde da noite, as resenhas, os replays dos lances mais perigosos, das faltas mais violentas,dos gols mais bonitos, das falhas mais clamorosas, dos impedimentos não marcados e dos penalties duvidosos, dos closes nos torcedores mais exaltados...
ainda bem. Eu nem teria percebido que Jesus voltara.
Ainda bem que a trombeta não soou nesses últimos dias (eu
acho). Eu não teria ouvido, pois estava muito ocupado discutindo a situação
política do país. Eu precisava convencer os meus
conhecidos de que a minha opção política é a melhor, e que eu sei a solução
para todos os problemas. É claro que eu sei o nome de todos os corruptos, sei
como resolver a questão da Educação, da Saúde, dos Transportes e da inflação.
Eu tenho a solução para a crise econômica! É muito simples! Não sei como as
pessoas ainda não sabem, por isso precisei gastar horas e horas em debates
intermináveis explicando quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Fiquei
aliviado quando me dei conta de que a trombeta ainda permanecia silenciosa
(acho).
Respirei mais calmo quando pensei que o arrebatamento da
Igreja não aconteceu nessas últimas semanas. Eu teria perdido o momento, pois
precisava atualizar meus e-mails, meus
posts no Facebook e no Twitter, e ver
as mais recentes piadinhas da web e
do WhatsApp. Precisava ver os últimos vídeos de gente idiota escorregando na
rua, caindo na praia, capotando de balanços e escorregadores nos parques de
diversão, e rir das pegadinhas mais bestas que se pode imaginar. Eu tinha que
saber quais eram os memes da hora.
Não podia correr o risco de ficar “por fora”, senão o que diriam os meus
amigos?
Eu achei bom que o dia do retorno de Jesus a esta Terra
ainda não chegou, porque eu teria perdido. É que eu precisava assistir aos
últimos capítulos da novela. Sabe como é, o pessoal fala que é coisa do diabo e
coisa e tal, mas se eu não sei o que as pessoas estão vendo e comentando, como
posso interagir com elas? Como poderia haver melhor razão para iniciar um
assunto do que o capítulo de ontem? É só fazer de conta que não tinha nenhuma
cena de traição, de violência gratuita, ou de beijo gay. A gente passa por cima dessas coisas secundárias. O que
importa é ter o que conversar com os outros.
Ainda bem que Jesus ainda não voltou, pois eu precisava assistir aquele DVD com o show gospel daqueles levitas adoradores que mandam a gente tirar o pé do chão e depois botar a cara no chão. É muita unção! Só de assistir ao vídeo a gente fica todo suado. Dizem que antigamente, na adoração a gente ficava arrepiado, mas agora são outros tempos... e também precisei ver
aquele filme de super-heróis que há muito tempo anunciavam que ia estrear.
Durante aquelas horas diante da telona pude descansar um pouco e me divertir
com as aventuras rocambolescas e completamente fantasiosas, sem me importar em
imaginar que, em sendo arrebatado aos céus, veria coisas muito além de qualquer
imaginação humana. Se bem que naquela nova série de TV também apareceram algumas
cenas tão cheias de efeitos especiais que nem sei se é possível haver algo mais
esplendoroso.
Espero que Jesus ainda demore a voltar, pois ainda quero
ir àquele show gospel, daquele cantor
famoso que, aliás, estava no jogo do Brasil, ele até apareceu na televisão no
meio da torcida, com camisa amarela e tudo. Ainda bem que ele não é daqueles
antiquados que diziam que não deveríamos nos envolver com futebol. Imagina
só... tantos jogadores e ex-jogadores que quando fazem gol levantam a mão para
o céu... por isso eu quero ir no show
gospel daquele cantor, ainda mais se for no estádio de futebol. Tudo bem que depois que o Brasil perdeu ele apagou de seu site as próprias fotos do dia do jogo e passou a falar que devemos orar por Israel, mas se ele vai ao estádio eu também posso.
Eu fiquei sossegado ao perceber que Jesus não havia voltado
durante estes dias. Assim eu tive bastante tempo para postar nas redes sociais
muitos selfies, como quando fui
naquele restaurante bacana, e tirei foto da comida antes de partir para cima do
prato. Todos os meus amigos viram, mas sei que alguns ficaram com inveja e não
curtiram. Acho até que vou apagá-los da minha lista. Realmente são invejosos
pois não custa nada dar um joinha nas
fotos de sorvetes, bolos, cachorro-quente, sanduíche e até macarronada que eu
posto! Tudo bem que foram muitos, mas o que é que tem? Achei que havia algo de
errado e quando postei alguns versículos ninguém nem gostou.
Por isso mudei de foco e retransmiti
várias fotos de gatinhos e de paisagens com por-do-sol, praias e montanhas,
flores e jardins com mensagens de auto-ajuda: aí sim, dessas o pessoal gostou... nem
ligaram se são mensagens de Gandhi, do “papa”, de “madre” Tereza, de “são”
Nicolau, de Lênin, de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Zé Cabaleiro ou de Alan Kardec... e
algumas que eu mesmo inventei.
Ainda bem que Jesus não voltou enquanto eu pensava nessas
coisas. Eu não teria forças nem para ver o que estava acontecendo, porque ainda
estou cansado da festa junina que teve na minha igreja. Tudo para Jesus, é
claro.
Havia bandeirinhas enfeitando tudo, todo mundo usava calça remendada e camisa xadrez! Só cantamos o louvorzão em ritmo de forró e country. A adoração atingiu o ápice quando todo mundo dançou em roda, em volta de uma fogueira de mentirinha, feita de papel celofane e cartolina. E no final do culto todos comeram canjica, pipoca, milho assado e pamonha. Não houve tempo para pregação nem evangelização, e ninguém se decidiu ao lado de Jesus, mas no nosso coração temos certeza de que foi tudo feito para glória de Deus e para manter os jovens na igreja. Mesmo que por trás de tudo estivessem as festas de “são” João.
Havia bandeirinhas enfeitando tudo, todo mundo usava calça remendada e camisa xadrez! Só cantamos o louvorzão em ritmo de forró e country. A adoração atingiu o ápice quando todo mundo dançou em roda, em volta de uma fogueira de mentirinha, feita de papel celofane e cartolina. E no final do culto todos comeram canjica, pipoca, milho assado e pamonha. Não houve tempo para pregação nem evangelização, e ninguém se decidiu ao lado de Jesus, mas no nosso coração temos certeza de que foi tudo feito para glória de Deus e para manter os jovens na igreja. Mesmo que por trás de tudo estivessem as festas de “são” João.
Estou feliz de que Jesus não tenha aparecido nas nuvens
ainda. Não tenho tido tempo de ler a Bíblia, nem de estudar o que Ele falou
sobre o fim dos tempos. Não tenho paciência para ler livros cristãos: eles são
muito profundos e me fazem pensar demais. Eles me deixam preocupado. Eles vivem
me cobrando mais responsabilidade, mais vida cristã, mais testemunho. Me
contento em saber que meu pastor disse que ninguém sabe direito sobre esse
negócio de arrebatamento, e que a volta de Jesus pode ser interpretada de forma
simbólica. Ele falou que é para a gente não se preocupar com essas coisas. Aí
sim fico mais sossegado e posso me concentrar em outras coisas.
Me deu um certo alívio ao ver que a maioria das pessoas da
igreja ainda está por aqui, teclando nas redes sociais e mandando torpedos,
atualizando perfis, compartilhando piadinhas! Isso prova que Jesus não voltou,
senão as teria arrebatado. São pessoas tão boas! Quase nunca faltam aos cultos,
estão sempre nas atividades da igreja, dão o dízimo toda semana, participam da
ceia, tocam no louvor, e as que não tocam no louvor, dançam! Não poderiam ficar
para trás. Se elas sumissem de repente, eu acreditaria que Jesus voltou. A
menos que elas não sejam o que parecem ser...
Ainda bem que Jesus não voltou nesses últimos dias.
Ou voltou???
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