domingo, 26 de abril de 2009

Entre a Bíblia e a Tradição (2)

Quando este blog ainda recebia comentários, antes da infestação de trolls, o Raniere comentou que
“naquilo em que os Pais da Igreja falharam em não harmonizar com as Escrituras não merecem mérito, mas naquilo que acertaram merecem crédito. Não se pode estudar doutrinas sem conhecer a História das doutrinas, e na história os pais tiveram sua importância”. A Célia disse que nunca esqueceu um professor que enfatizava o versículo "Examinai tudo e retende o que é bom", porque, ela diz, “cada um tem a sua própria teologia – a Teologia de Paulo, de Pedro e quantos mais aparecerem (e tem aparecido muitos!), mas que isto não necessariamente tem embasamento total nas Escrituras; como a Palavra de Deus é ampla”, continua ela, “dá margem a várias interpretações, então coloca-se um pouco de Filosofia aqui, e Psicologia ali, com um pouco mais de Sociologia, e o que temos? Meias verdades supostamente fundamentadas na Palavra”.
Concordo com ambos, pois Célia complementa Raniere: justamente por acrescentarem interpretações pessoais é que os “pais” não harmonizaram seu pensamento com a Palavra de Deus. Não os desprezamos, mas apenas evitamos colocá-los em pé de igualdade com a Bíblia. Foram e são importantes os “pais”, não há dúvida; mas seu papel não pode ser super-estimado. E aí está a base católica para dizer que sua tradição é a única que pode interpretar a Bíblia, por ter o mesmo peso; aí está a razão da ressalva ao catolicismo: ao criticar outros grupos cristãos, dizem que ninguém pode interpretar corretamente a Bíblia, a não ser eles mesmos. Usam II Pedro 1:19, “sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação”. Ora, a passagem contradiz a doutrina do “sagrado magistério”, que se arvora como único organismo capaz de interpretar a Bíblia – “nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação”. Mas eles pretendem alçar os “pais” ao mesmo patamar dos primeiros apóstolos – mesmo quando os “pais” contradizem a Palavra. Aí entra a tradição ou o “magistério”, pretendendo rebaixar a Bíblia aos seus achismos de momento, ao compasso das eras, dos costumes e da política, com argumentos filosóficos, como disse a Célia. Isso não dá para engolir. Paulo escreve: “derribando raciocínios e todo baluarte que se ergue contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência a Cristo... Tendo cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo” (II Coríntios 10:5 e Colossenses 2:8).
Se nos debruçarmos sobre o exemplo de vida dos “pais”, veremos o que os influenciou a pensarem como pensavam. Sua própria ideologia – no início da Idade Média o seu modo de pensar já pode ser considerado assim, pois a filosofia helênica misturada à teologia cristã já criara uma praxis fundamentalmente distinta da doutrina dos apóstolos – fechou o círculo sobre eles, e se tornaram prisioneiros do próprio discurso. Criaram, sem perceber, um monstro que passou a dominá-los. E isto porque os “pais”, nem sempre, possuíam o discernimento espiritual para separar a realidade espiritual das coisas terrenas, como as citadas interpretações pessoais e particulares, a política e as diversas correntes filosóficas. 
A bem da verdade, eles nem sempre eram pessoas agradáveis ou de boa índole: Tertuliano, por exemplo, que nasceu em Cartago no ano 155, filho de um centurião romano, foi jurista em Roma, onde conheceu o Cristianismo em 193, explanou diversos conceitos como a trindade de três aspectos do divino mas com uma única substância, e a separação da Bíblia em dois testamentos. Porém, oscilava tanto que rompeu com a ortodoxia em 207 e aderiu ao montanismo, uma seita herege que enfatizava o misticismo. Depois, Tertuliano passou a considerar os próprios montanistas moderados demais, rompendo também com eles. Morreu em 222 e, como atestam vários historiadores, possuía uma tendência fanática e até mesmo cruel.
Justino Mártir, que nasceu em Flávia Neápolis (atual Nablus, Jordânia), cerca do ano 100, foi filósofo, e durante seus estudos do platonismo, dos ensinos pitagóricos, do estoicismo e de Aristóteles convenceu-se de que nem toda a verdade estava contida na filosofia, e que precisava continuar buscando pela verdade. Converteu-se ao cristianismo, em Éfeso, mas ao assumir a tarefa de converter pagãos educados não se desfez dos métodos filosóficos, em contraste com Paulo (ver Atos 17:16 e seguintes), que desprezava toda a metodologia humana. Embora tenha atacado de modo muito eficaz o gnosticismo, fazia da doutrina do "Logos" o centro doutrinário de sua abordagem filosófica grega à teologia. Ele acreditava que o Logos divino, o Filho de Deus, implanta as suas sementes em muitos lugares, dentro e fora da religião cristã; e também que a filosofia grega servia de aio para os pagãos para conduzi-los a Cristo, mais ou menos como a lei mosaica fez no caso dos judeus. Foi martirizado entre 163 e 167.
Hipólito viveu entre 160 e 236 d.C. Foi um apologista erudito contra o gnosticismo, mas também era cabeça de um grupo cismático local. Já Teófilo de Alexandria foi um oportunista do pior tipo, e Cirilo, seu sobrinho, perseguiu seus inimigos implacavelmente. Em 32 anos de episcopado, deixou muitos escritos e deu um ultimato aos judeus de Alexandria: ou aceitavam a religião católica ou se mudavam da cidade. Depois fechou igrejas onde não se aceitavam suas idéias, dentre elas o dogma de Maria como a Mãe de Deus (falaremos disto semana que vem). Poucos deles sabiam a língua original das Escrituras, porque ler hebraico equivalia a ser judaísta, e os judeus desde então, muito antes da Inquisição, eram vistos como “assassinos de Cristo”, como ensinavam alguns “pais”; Jerônimo era uma exceção, pois conhecia hebraico. Nasceu na Dalmácia em 342 e educou-se em Roma, viajou muito e por fim fixou residência em Belém, onde fundou um mosteiro e passou os últimos anos de sua vida. Fundador do monasticismo latino, sua obra mais importante foi uma tradução da Bíblia inteira para o latim, que veio a chamar-se "Vulgata" e se tornou a base da Bíblia católica até que o Concílio de Trento adicionou os apócrifos, que já naquela época Jerônimo identificara como não-inspirados. Ele traduziu o Antigo Testamento diretamente do hebraico, em vez de fazê-lo da "Septuaginta", conforme outros tradutores. Mas era apaixonado, briguento e ofensivo, nas palavras e na pena. Quando jovem, favoreceu as opiniões de Orígenes, mas depois atacou-o violentamente. Eremita, sacerdote, erudito e guia espiritual de nobres e de ricos, de mulheres e de monges romanos; mas, apesar disso, foi questionado abertamente e não era considerado, como hoje, uma sumidade total. Sobre a beata Marcela, ele próprio escreveu: “Não aceitava prontamente minha explanação como sendo satisfatória. Propunha questões do ponto de vista oposto, não por pretender ser contenciosa, mas para inquirir” (Epístola 127). Ele admitia não ter certeza do que dizia: “Se em alguma passagem eu ficava confuso, confessava francamente que ignorava o sentido” (Epístola 108). Seus textos, como os de Clemente, cheios de referências da literatura pagã, exaltam a salvação pelas obras ao dizer que Paula, uma cristã falecida em 404, “deserdou-se das coisas terrenas e entregou tudo aos filhos, para que pudesse encontrar herança nos céus” (Epístola 108).
Ambrósio (340-397) foi ordenado bispo de Milão uma semana após sua “conversão”, e exerceu grande influência sobre Agostinho. Embora tenha se tornado profundo conhecedor da Bíblia, era fortemente influenciado pelos escritores pagãos da Antiguidade, empregava o método alegórico dos alexandrinos e exaltava a importância da filosofia grega e do conhecimento através da razão. Foi o primeiro teólogo cristão a usar a expressão "virtudes cardeais", que encontrou nos escritos de Cícero sobre as classificações morais de Platão.
Alguns eruditos rejeitam Orígenes como “Pai da Igreja” por ele ensinar que Deus, no fim, reconciliaria toda a natureza e todas as criaturas, incluindo Satanás. Para Orígenes, a Bíblia contém erros. Talvez venha daí a idéia de que é necessário algum sábio “magistério” para filtrar a Bíblia para o povo, posição adotada pelo catolicismo até hoje.
Eusébio de Cesaréia informa na sua História Eclesiástica 6:19 que Orígenes “leu as obras de Queremon, o estóico, e os de Cornuto. Desses aprendeu o método alegórico de interpretação usual nos mistérios dos gregos, aplicando-os às Escrituras judaicas”. Na verdade, Orígenes nem era tão bom assim em matéria de interpretação. Como aconteceu a outros eruditos, o uso desse método fazia enxergar mistérios ocultos em textos claros e diretos. Mas na prática, Orígenes acabou fazendo o contrário: atormentado pelo desejo sexual, levou ao pé da letra a passagem de Mateus 5:28-30 e castrou-se.
Agostinho também vivia atormentado pelo sexo. Além de defender o funcionamento dos bordéis, como vimos no artigo anterior, escrevia: “Mandais-me, sem dúvida, que me abstenha da concupiscência da carne... mas na minha memória vivem ainda as imagens de obscenidades... Durante o sono, não só me arrastam ao deleite, mas até à aparência do consentimento e da ação. A ilusão da imagem possui tanto poder na minha alma e na minha carne que, enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a ações a que, acordado, nem sequer as realidades me podem persuadir” (Confissões 10, 30:41). Talvez sofresse assim porque não era dado à leitura da Bíblia, até ser “ordenado padre”, como escreveu ao bispo Valério: “Eu tinha de estudar as prescrições das Escrituras, orar e ler... não o fiz antes porque não tive tempo, mas tão logo fui ordenado, planejei usar todo o tempo de lazer para estudar as Escrituras” (Epístola 41). Agostinho revela-se pródigo em heresias, contrárias ao ensino bíblico, como por exemplo:
Panteísmo:Deus está todo em toda parte. Será talvez pelo fato de nada do que existe poder existir em Vós que todas as coisas vos contêm?” (Confissões 1, 2:2)
Culto e oferenda aos mortos: (Mônica, sua mãe, trazia) “papas, pão e vinho puro, como em África costumava fazer, levando-os para junto das sepulturas dos santos ... e, se havia muitas sepulturas de mortos a honrar daquele modo, levava sempre o mesmo copo...” (Conf. 6, 2:2)
Oração pelos mortos:Esqueço um momento as boas ações de minha mãe (então falecida), pelas quais alegremente dou graças, para Vos pedir perdão de seus pecados... perdoai-lhe também as suas dívidas, se algumas contraiu depois do batismo.” (Conf. 9, 13:35)
Para não estender muito mais, destacamos os perigos de se colocar no mesmo pé de igualdade com a Bíblia um corpo doutrinário como esse, extremamente conflitante com a Palavra de Deus.
1 – As tradições devem ser analisadas criticamente, para não se tornarem mandamentos de homens, acerca dos quais Jesus nos advertiu;
2 – Católicos e ortodoxos fariam muito bem examinando o elemento humano na formação da tradição, para não colocá-la ao lado ou acima da Palavra de Deus;
3 – Nenhuma comunidade deveria forçar suas tradições sobre outros, como se essas tradições fossem mandamentos de Deus. Sola Scriptura!
COMENTÁRIO FINAL Deixemos que a Bíblia fale, inclusive com Pedro, que alguns chamam de “primeiro papa”, detonando a “tradição”:
“Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? ... Por causa da vossa tradição invalidastes a palavra de Deus” (Mateus 15:3, 6);
“Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Neglicenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens.” (Mateus 7:7-8);
“Respondeu-lhes Jesus: Bem profetizou Isaías acerca de vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios; o seu coração, porém, está longe de mim; mas em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Vós deixais o mandamento de Deus, e vos apegais à tradição dos homens. Disse-lhes ainda: Bem sabeis rejeitar o mandamento de Deus, para guardardes a vossa tradição... invalidando assim a palavra de Deus pela vossa tradição que vós transmitistes; também muitas outras coisas semelhantes fazeis.” (Marcos 7:6-9, 13);
“Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo” (Colossenses 2:8);
“Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes dos vossos pais.”
(I Pedro 1:18);
“Errais ao não conhecer as Escrituras e nem o poder de Deus.” (Mateus 22:29).

DOA A QUEM DOER.

Na próxima semana: MARIA.