Prossegue a crítica: a Bíblia estaria “de capa a capa, recheada de erros, barbaridades científicas, contradições e incongruências, os quais os ‘harmonistas’, sem nunca quererem admití-los, tentam contornar a qualquer custo para sustentar seus dogmas e crenças, com manobras e explicações mirabolantes e desonestas”. E dá como exemplo:
I Coríntios 15:5, com relação à ressurreição de Jesus, Paulo diz: “que apareceu a Cefas, e depois aos doze”. Os
céticos afirmam que, com a morte de Judas e antes da eleição de Matias,
restaram apenas onze, o que seria um erro humano de Paulo, fato que tira da
Bíblia a qualidade de ser a Palavra infalível de Deus. Ora, essa é de uma
infantilidade tal que nem deveria ser levada a sério. Mas eu levo a sério e
digo que nos relatos não apenas se fala em onze, como também em 13 discípulos e
pelo menos uma vez em dez discípulos – e nem por isso há contradição.
Veja só:
Jesus “apareceu a Cefas, e depois aos doze”.
Sim, depois de quê, cara pálida? Depois
de algum tempo. É óbvio que, como Jesus apareceu “a mais
de quinhentos irmãos duma [só] vez” – a maioria deles ainda
estava viva quando Paulo escreveu essas palavras, e poderiam atestar a sua
veracidade (v.6). Além do mais, “depois apareceu a
Tiago, então a todos os apóstolos”. Então é óbvio que
Matias também testemunhou uma ou mais dessas aparições. Não há discordância ou
erro. E além disso, a ênfase desse trecho de Coríntios é a autoridade
apostólica, não o cartão de ponto dos apóstolos. O que interessa aqui é o
ensino sobre a constituição dos fundamentos da Igreja, não explicar quem estava
onde. O pessoal de Corinto já sabia que havia 12 apóstolos, não estavam
preocupados com quem veio antes de quem, quem foi eleito depois etc.
Em outra parte a Bíblia diz que Jesus apareceu a dez discípulos, que foi quando Tomé
estava ausente (devia estar procurando divergências na Torá e por isso perdeu a
chance de se encontrar com o Cristo ressurreto). Judas havia se suicidado e
Matias ainda não fora escolhido. E uma vez Jesus apareceu a pelo menos treze
discípulos: os onze originais, sem Judas e com Tomé presente, mais os dois do
caminho de Emaús, e ainda “outras pessoas” (provavelmente “não-apóstolos”): “E na mesma hora levantaram-se (os dois
discípulos que vinham de Emaús) e voltaram para
Jerusalém, e encontraram reunidos os onze e os que estavam com eles”
(Lucas 24:33). E se Matias estivesse presente (“os que
estavam com eles”), Jesus teria aparecido “aos doze” (onze mais
um), mais os dois de Emaús, e então seriam 14 discípulos... Em todo caso, o
intuito de Paulo, na carta aos Coríntios, não é fazer acareação ou
contabilidade do número de testemunhas.
A resolução desta aparente contradição passa pela seguinte regra de
interpretação, já elencada anteriormente (princípios gramaticais): interprete
as palavras no sentido que tinham no tempo do autor; e interprete a passagem em
harmonia com o seu contexto. O que ele está dizendo nesta carta se refere ao
ministério apostólico, e que todos os apóstolos testemunharam a aparição do
Cristo ressurreto. Por Cristo ter aparecido por último a ele, Paulo, ele mesmo
se considerava um “abortivo”, um apóstolo “temporão”. É isso que ele está
ensinando, não que os apóstolos eram 11, 12 ou 13.
Outro “erro bíblico” estaria em Atos 7:14, quando Estevão diz que “a parentela de José que desceu ao Egito era de 75 almas”.
Mas Gênesis 46:27 nos informa o número de setenta. Vejamos: Estevão diz “a
parentela”. O final da frase de Gênesis de fato diz “todas
as almas da casa de Jacó, que vieram para o Egito eram setenta”.
Agora por favor leia o versículo 26: “Todas as almas
que vieram com Jacó para o Egito e que saíram da sua coxa, fora as
mulheres dos filhos de Jacó, eram todas sessenta e seis almas”;
e agora o 27: “e os filhos de José, que lhe nasceram no
Egito, eram duas almas. Todas as almas da casa de Jacó, que vieram para
o Egito eram setenta”. Vamos ver isso direitinho. Guarde
essas expressões: “da casa de Jacó” e “que saíram da sua coxa”.
Todos os que foram de Canaã para o Egito, “que saíram da sua coxa”,
isto é, seus descendentes diretos, foram sessenta e seis. Fora as mulheres
dos filhos de Jacó, como está claro no texto. Quantas e quais eram essas
mulheres?
Se lermos a partir do verso 1, veremos que “Partiu, pois,
Israel com tudo quanto tinha”. Os versos 5 e 7 dizem: “Então Jacó se levantou de Beer-Seba; e os filhos de Israel
levaram seu pai Jacó, e seus meninos, e as suas mulheres... Os seus filhos e os
filhos de seus filhos com ele, as suas filhas e as filhas de seus filhos”.
Vai somando aí: os filhos de Jacó (que é Israel), fora José (que obviamente
não estava na caravana que “desceu ao Egito”), eram 11.
Os “seus filhos” (isto é, os filhos dos filhos de Jacó, os netos) somam
48; com os 11 filhos de Jacó, temos 59.
Mais
quatro bisnetos (dois filhos de Perez e dois de Beria), 63.
Mais
as três mulheres sobreviventes de Jacó: Lia, Bila e Zilpa (pois Raquel já tinha
morrido), e temos 66.
Não
estão nessa lista a filha de Aser (Será, v. 17, contada à parte), Diná (também
contada em separado) e o próprio Jacó, o que dá 69. Falta um.
O verso 7 diz que foram com Jacó “os seus filhos e
os filhos de seus filhos com ele, as suas filhas e as filhas de seus filhos”,
mas só uma “filha de seus filhos” é chamada pelo nome: Será, filha de Aser (v.
17). Evidentemente havia outra neta de Jacó, cujo nome não está na lista; outra
possibilidade surge quando olhamos de novo o verso 15, e vemos que “todas as almas de seus filhos e de suas filhas”
(isto é, de Lia), e podemos entender que além de Diná, Lia teve uma outra
filha, cujo nome desconhecemos.
Essa conta bate: “Todas as almas da casa de
Jacó, que vieram para o Egito eram setenta” (Gênesis 46:27). Todas as almas que
saíram da coxa de Jacó, isto é, seus descendentes diretos, eram 66; mais as
três esposas sobreviventes e o próprio Jacó, são 70. Os cinco restantes – que
constituem a diferença entre a informação de Gênesis e o testemunho de Estevão
– poderiam ser o marido de Diná e outros “parentes”, como esposas dos netos de
Jacó (pois se relata que um filho de Judá, Perez, tinha dois filhos, assim como
um filho de Aser, Beria, que também já tinha dois filhos), ou noras de Jacó,
isto é, mulheres dos filhos de Jacó; ou a outra neta não nomeada, ou ainda
outra filha de Lia... Lembre-se que da conta em Gênesis 46:26 estão fora as
mulheres dos filhos de Jacó. Sugiro que você faça a soma, posso ter
errado... já a Bíblia... não erra.
Essa alegada “discrepância” é facilmente entendida, pois Estevão diz: “a parentela
era 75”, e Gênesis diz que “os que saíram da sua coxa eram 66”, ou seja,
descendentes diretos. Entre a “parentela” existiam alguns que não eram
descendentes diretos, isto é, que “não saíram da sua coxa” (genros, noras
etc.).
Um pouco de aritmética do ensino fundamental resolve fácil essa “dúvida”.
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