Para quem não se lembra: as “dúvidas” e “questionamentos” serão sempre escritos neste tipo de letra. Então, a “dúvida” de hoje é: Em
Marcos 5 é relatado o conhecido episódio do endemoninhado geraseno (de Gerasa),
mas o texto paralelo de Mateus 8 situa o acontecido em outra cidade, de nome
Gadara, e o número de endemoninhados, nesse segundo caso,
seriam dois. Mas a questão maior é: como poderia a manada de porcos em que entraram os
demônios se precipitarem no mar, sabendo-se que nenhuma das duas cidades eram
costeiras ou mesmo próximas do mar?
Para começo de conversa, o que o evangelista
chama de “mar” não era o “oceano” e nem mesmo o “mar Mediterrâneo” (chamado na
época de “o grande mar”), mas sim o “mar da Galiléia”, um lago formado
pelas águas do rio Jordão numa depressão, mais ou menos no meio do território israelense. Qualquer estudante do segundo grau sabe que este “mar da
Galiléia” é o mesmo “mar de Tiberíades”, ou lago “de Genesaré” - porque Tiberíades e Genesaré são cidades localizadas nas suas margens. É um lago
de água doce. Tem comprimento máximo de cerca de 19 km e largura máxima
de cerca de 13 km
(166 km2) , com profundidade máxima de 40 m . A água flui até o mar
Morto, ao sul, outro lago cuja água se torna salgada porque devido à alta
temperatura da região, evapora e os resíduos depositados aumentam a sua
densidade e salinidade. Todo mundo sabe disso... e sabe também que para o povo
daquela época esses “lagos” eram grandes o bastante para serem chamados de
“mar”.

Isto posto, vejamos o que dizem os eruditos que conhecem a
língua original dos evangelhos. R. V. G. Tasker diz que “a redação mais bem comprovada de Mateus é ‘gadarenos’, e não
‘gergesenos’. Gadara era uma cidade que ficava a uns 10 km do lago. Marcos e Lucas
dizem ‘gerasenos’, sendo Gerasa uma cidade que distava uns 50 km . A grafia ‘gergesenos’,
estabelecida nos mais recentes manuscritos gregos, parece dever-se a Orígenes”
(Fonte: Mateus - Introdução e comentário; Ed. Vida Nova, pg.76).
Leon L. Morris, outro erudito, diz que “a terra dos gerasenos nos apresenta um problema, pois Gerasa ficava a
cerca de 64 km
ao sudeste do lago. Mateus registra ‘terra dos gadarenos’, mas Gadara fica a 9 km de distância, e separada
pelo desfiladeiro do Iarmuque. Todos os três Evangelhos têm as duas variações,
e também uma terceira, ‘o país dos gergesenos’. Este último texto era
favorecido por Orígenes... os estudiosos modernos indicam a vila de Khersa e
pensam que talvez esta tenha retido o nome antigo... devemos entender que a
respectiva cidade controlava uma faixa de terra até a beira do lago” (Fonte:
Lucas - Introdução e comentário; Ed. Vida Nova; pg.147).

Vamos resumir tudo e destacar os pontos principais:
1. Os textos dizem que Jesus estava na região da Galiléia e se dirigiu para a região dos “gadarenos” (Mateus) ou para a região dos “gerasenos” (Marcos e Lucas);
2. O encontro foi imediato, ou seja, perto da praia;
1. Os textos dizem que Jesus estava na região da Galiléia e se dirigiu para a região dos “gadarenos” (Mateus) ou para a região dos “gerasenos” (Marcos e Lucas);
2. O encontro foi imediato, ou seja, perto da praia;

4. Os donos dos porcos foram à cidade dizer o que havia ocorrido;
5. Jesus subiu novamente no barco e voltou para a Galiléia, assim que os donos dos barcos retornaram da cidade.
Concluindo esta parte geográfica:
1. Os três textos referem-se à “região” e não à “cidade”. Vimos que a cidade de Gadara ficava a uns 8 ou
2. Os três textos falam que o encontro foi próximo à praia. Portanto, os próprios autores não seriam tão burros de quererem dizer com “região” literalmente as cidades de Gadara ou Gerasa. Se eles disseram praia, automaticamente se subentende que não foi na cidade e nem ao lado dela, uma vez que estas duas cidades não são praianas. Por isso disseram “região”.
3. Os textos dizem que os donos dos porcos foram até a cidade contar o ocorrido. Ora, se foram à cidade significa que não estavam na cidade. Se Gadara ficava a
4. Os textos dizem que logo
5. Se Marcos e Lucas quiseram dizer com “região”, ligando à “capital” Gerasa, a
6. “Gergesa” é opinião unânime dos críticos que se trata de uma tentativa de Orígenes para “corrigir” o que ele pensou ser um problema, unificando os nomes. Portanto, descartado. Os manuscritos mais antigos não apóiam “gergesenos”.
7. É evidente que os autores escolheram como referência as cidades que vieram em suas mentes como as principais. No caso de Mateus, a mais próxima (Gadara, “região dos gadarenos”). Marcos e Lucas usaram a capital (Gerasa) como referência para “região dos gerasenos”. A passagem fica mais clara ainda quando descobrimos que o original em grego (nos três relatos paralelos) usa a palavra “χωραν”, que pode significar: costa, região, província, país, solo, ou terra (fonte). Como em Mateus 2:12; Lucas 15:13; Atos 16:6, etc. Se o episódio tivesse ocorrido na cidade brasileira de Santos, as expressões “a terra dos santistas” e “a praia dos paulistas” seriam igualmente válidas, pois Santos é uma cidade praiana que fica no Estado de São Paulo.
8.
Bem próximo ao lago existe hoje uma cidade chamada Hamat Gadar, bem pegada à
antiga Gadara. A praia mais próxima de Gadara está a cerca de 8 km, e do outro lado do “mar ” da Galiléia está Cafarnaum, a 18 km, que foi
a distância que Jesus percorreu de barco (durante este trajeto ocorreu a
tempestade que Jesus acalmou).
Agora, quanto ao número de endemoninhados, se um só ou
dois, com certeza eram dois, pois Mateus afirma isto com toda clareza. O que
ocorre é que ele achou por bem registrar o acontecimento falando sobre ambos, e
Marcos e Lucas quiseram contar falar sobre somente um deles; ou melhor, suas
fontes relataram apenas um, pois é possível que apenas Mateus tenha
testemunhado o fato pessoalmente, já que certamente estava com Jesus na ocasião.
Marcos e Lucas escreveram com base no testemunho de outros (Lucas 1:1,2). Mas embora
pareça complicado conciliar as narrativas, é o mesmo princípio de que falei
antes sobre o(s)
cego(s) de Jericó.
Digamos que preciso viajar de carro para um determinado
lugar, e comigo fossem também dois amigos. Durante o trajeto, vimos dois
acidentes na rodovia, um com um ônibus que furou um pneu e ficou parado no
acostamento, e outro com um caminhão que perdeu o freio e bateu numa árvore
(felizmente ninguém morreu nem se machucou, meu exemplo é do bem). No fim da
viagem, eu comentei o caso do ônibus, um dos meus amigos contou que viu um
caminhão batido numa árvore, e o outro falou para todo mundo sobre os dois
acidentes. Quem está certo e quem está errado? Não há nenhuma contradição!
Veja bem, os Evangelhos relatam 35 milagres realizados
por Jesus. Mateus menciona vinte, Lucas também. Marcos, o mais curto, trata de
dezoito deles, e João, o último a ser escrito, apenas sete. É fácil chegar a
uma conclusão bastante lógica.
Marcos, o primeiro a ser escrito, é o que dá mais
detalhes do caso do endemoninhado, gastando 20 versos (eu sei que essa divisão
é bem mais recente que o texto original, mas serve para nossa comparação).
Lucas, o evangelho contemporâneo ao de Mateus, usa 14 versos, e seu relato é mais
parecido com o de Marcos. Mateus, talvez por ser o que mais contém milagres,
resumiu mais, apenas sete versos, embora contando que havia também outro
endemoninhado. João, o último a ser escrito, provavelmente considerou que todos
já conheciam essas histórias e preferiu enfatizar assuntos ainda inéditos ou pouco conhecidos, como
por exemplo, o longo sermão na última ceia. Por isso ele “pula” a maioria dos
milagres já contados pelos outros evangelistas, inclusive esse do(s)
endemoninhado(s). Mas há outros que só ele conta e os demais, não – água
transformada em vinho, o paralítico de Betesda, o cego de nascença e a pesca
milagrosa depois da ressurreição. São fraudes? Invenções que os outros desconheciam?
A moeda na boca do peixe está só em Mateus, assim como a cura de dois cegos na
Galiléia, e também a cura de um mudo; já o cego de Betsaida e o surdo-mudo em Decápolis, só
Marcos menciona; e o homem com hidropisia, os dez leprosos e a mulher curvada,
só Lucas. E daí? João não fala nada da transfiguração, mesmo tendo estado
diretamente envolvido. Isto invalida o testemunho de algum deles? As parábolas
idem: alguns evangelistas contam umas, outros não; alguns contam as mesmas dos
outros, mas as palavras de um não são 100% iguais às dos outros. Entretanto, o
ensinamento é igualzinho em qualquer dos relatos.

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