sábado, 8 de novembro de 2014

Contradições (?) bíblicas - 10

Para quem não se lembra: as dúvidas e questionamentos serão sempre escritos neste tipo de letra. Então, a dúvida de hoje é: Em Marcos 5 é relatado o conhecido episódio do endemoninhado geraseno (de Gerasa), mas o texto paralelo de Mateus 8 situa o acontecido em outra cidade, de nome Gadara, e o número de endemoninhados, nesse segundo caso, seriam dois. Mas a questão maior é: como poderia a manada de porcos em que entraram os demônios se precipitarem no mar, sabendo-se que nenhuma das duas cidades eram costeiras ou mesmo próximas do mar?
Para começo de conversa, o que o evangelista chama de “mar” não era o “oceano” e nem mesmo o “mar Mediterrâneo” (chamado na época de “o grande mar”), mas sim o “mar da Galiléia”, um lago formado pelas águas do rio Jordão numa depressão, mais ou menos no meio do território israelense. Qualquer estudante do segundo grau sabe que este “mar da Galiléia” é o mesmo “mar de Tiberíades”, ou lago de Genesaré - porque Tiberíades e Genesaré são cidades localizadas nas suas margens. É um lago de água doce. Tem comprimento máximo de cerca de 19 km e largura máxima de cerca de 13 km (166 km2) , com profundidade máxima de 40 m. A água flui até o mar Morto, ao sul, outro lago cuja água se torna salgada porque devido à alta temperatura da região, evapora e os resíduos depositados aumentam a sua densidade e salinidade. Todo mundo sabe disso... e sabe também que para o povo daquela época esses “lagos” eram grandes o bastante para serem chamados de “mar”. 
Aliás, eram (e são) tão grandes que é comum ocorrerem violentas tempestades, pois são cercados por montanhas, diretamente responsáveis pelas tormentas freqüentes. Foi uma dessas que Jesus acalmou pouco antes de chegar à região de Gadara/Gerasa (Marcos 4:35-41; Mateus 8:23-27;  Lucas 8:22-25), o que atesta ser o lago bastante grande a ponto de ser chamado “mar”, e de possivelmente ocorrerem naufrágios em suas águas. Até hoje essa terminologia persiste: o Mar Morto, que é também pouco mais que um lago, ainda é chamado de “mar” sem cerimônia. O Mar Cáspio, localizado na Ásia Central, é o maior dos chamados mares interiores e muitas vezes é referido como um grande lago. Também na Ásia Central, o mar de Aral era considerado o maior lago do mundo, até sofrer um processo de seca que diminuiu 90% sua área original. Portanto, lago ou mar, de água doce ou salgada, tanto faz, trata-se apenas do ponto de vista.
Isto posto, vejamos o que dizem os eruditos que conhecem a língua original dos evangelhos. R. V. G. Tasker diz que “a redação mais bem comprovada de Mateus é ‘gadarenos’, e não ‘gergesenos’. Gadara era uma cidade que ficava a uns 10 km do lago. Marcos e Lucas dizem ‘gerasenos’, sendo Gerasa uma cidade que distava uns 50 km. A grafia ‘gergesenos’, estabelecida nos mais recentes manuscritos gregos, parece dever-se a Orígenes” (Fonte: Mateus - Introdução e comentário; Ed. Vida Nova, pg.76).
Leon L. Morris, outro erudito, diz que “a terra dos gerasenos nos apresenta um problema, pois Gerasa ficava a cerca de 64 km ao sudeste do lago. Mateus registra ‘terra dos gadarenos’, mas Gadara fica a 9 km de distância, e separada pelo desfiladeiro do Iarmuque. Todos os três Evangelhos têm as duas variações, e também uma terceira, ‘o país dos gergesenos’. Este último texto era favorecido por Orígenes... os estudiosos modernos indicam a vila de Khersa e pensam que talvez esta tenha retido o nome antigo... devemos entender que a respectiva cidade controlava uma faixa de terra até a beira do lago” (Fonte: Lucas - Introdução e comentário; Ed. Vida Nova; pg.147).
A Bíblia de Estudo NVI traz em seu comentário de Mateus 8: “Região dos gadarenos: região ao redor da cidade de Gadara, quase 10 km a sudeste do mar da Galiléia. Marcos e Lucas identificam a região pela capital, Gerasa, localizada uns 56 km a sudeste”. E no comentário de Marcos 5: “Região dos Gerasenos: Gerasa, situada a uns 56 km a sudeste do mar da Galiléia, pode ter possuído terras no litoral leste do mar e assim ter dado seu nome a uma pequena aldeia ali, que hoje é chamada Khersa. A uns 1.600 m ao sul há um despenhadeiro bastante íngreme dentro de 45 m da praia, e a 3 km existem túmulos nas cavernas, que parecem ter sido usadas como habitações”.
Vamos resumir tudo e destacar os pontos principais:
1. Os textos dizem que Jesus estava na região da Galiléia e se dirigiu para a região dos “gadarenos” (Mateus) ou para a região dos “gerasenos” (Marcos e Lucas);
2. O encontro foi imediato, ou seja, perto da praia;
3. Os porcos mergulharam de um precipício “no mar”;
4. Os donos dos porcos foram à cidade dizer o que havia ocorrido;
5. Jesus subiu novamente no barco e voltou para a Galiléia, assim que os donos dos barcos retornaram da cidade.
Concluindo esta parte geográfica:
1. Os três textos referem-se à “região” e não à “cidade”. Vimos que a cidade de Gadara ficava a uns 8 ou 10 km da praia. Portanto, perfeitamente aceitável como ponto de referência. É errado referir-se a uma região ligando-a a uma cidade que fica a 8 ou 10 km de distância?
2. Os três textos falam que o encontro foi próximo à praia. Portanto, os próprios autores não seriam tão burros de quererem dizer com “região” literalmente as cidades de Gadara ou Gerasa. Se eles disseram praia, automaticamente se subentende que não foi na cidade e nem ao lado dela, uma vez que estas duas cidades não são praianas. Por isso disseram “região”.
3. Os textos dizem que os donos dos porcos foram até a cidade contar o ocorrido. Ora, se foram à cidade significa que não estavam na cidade. Se Gadara ficava a 8 km de distância, em no máximo duas horinhas andando rapidinho, “fulos da vida” como estavam, daria tempo de sobra.
4. Os textos dizem que logo em seguida Jesus entrou novamente no barco. Isso mostra que Ele não estava longe do barco e nem estava na cidade.
5. Se Marcos e Lucas quiseram dizer com “região”, ligando à “capital” Gerasa, a 56 km, isto se torna um problema? Mateus ligou “região” à cidade mais próxima “Gadara”, mas Marcos e Lucas ligaram a narrativa a Gerasa. Nada de mais.
6. “Gergesa” é opinião unânime dos críticos que se trata de uma tentativa de Orígenes para “corrigir” o que ele pensou ser um problema, unificando os nomes. Portanto, descartado. Os manuscritos mais antigos não apóiam “gergesenos”.
7. É evidente que os autores escolheram como referência as cidades que vieram em suas mentes como as principais. No caso de Mateus, a mais próxima (Gadara, “região dos gadarenos”). Marcos e Lucas usaram a capital (Gerasa) como referência para “região dos gerasenos”. A passagem fica mais clara ainda quando descobrimos que o original em grego (nos três relatos paralelos) usa a palavra 
“χωραν”, que pode significar: costa, região, província, país, solo, ou terra (fonte). Como em Mateus 2:12; Lucas 15:13; Atos 16:6, etc.  Se o episódio tivesse ocorrido na cidade brasileira de Santos, as expressões “a terra dos santistas” e “a praia dos paulistas” seriam igualmente válidas, pois Santos é uma cidade praiana que fica no Estado de São Paulo.
8. Bem próximo ao lago existe hoje uma cidade chamada Hamat Gadar, bem pegada à antiga Gadara. A praia mais próxima de Gadara está a cerca de 8 km, e do outro lado do mar da Galiléia está Cafarnaum, a 18 km, que foi a distância que Jesus percorreu de barco (durante este trajeto ocorreu a tempestade que Jesus acalmou).
Agora, quanto ao número de endemoninhados, se um só ou dois, com certeza eram dois, pois Mateus afirma isto com toda clareza. O que ocorre é que ele achou por bem registrar o acontecimento falando sobre ambos, e Marcos e Lucas quiseram contar falar sobre somente um deles; ou melhor, suas fontes relataram apenas um, pois é possível que apenas Mateus tenha testemunhado o fato pessoalmente, já que certamente estava com Jesus na ocasião. Marcos e Lucas escreveram com base no testemunho de outros (Lucas 1:1,2). Mas embora pareça complicado conciliar as narrativas, é o mesmo princípio de que falei antes sobre o(s) cego(s) de Jericó.
Digamos que preciso viajar de carro para um determinado lugar, e comigo fossem também dois amigos. Durante o trajeto, vimos dois acidentes na rodovia, um com um ônibus que furou um pneu e ficou parado no acostamento, e outro com um caminhão que perdeu o freio e bateu numa árvore (felizmente ninguém morreu nem se machucou, meu exemplo é do bem). No fim da viagem, eu comentei o caso do ônibus, um dos meus amigos contou que viu um caminhão batido numa árvore, e o outro falou para todo mundo sobre os dois acidentes. Quem está certo e quem está errado? Não há nenhuma contradição!
Veja bem, os Evangelhos relatam 35 milagres realizados por Jesus. Mateus menciona vinte, Lucas também. Marcos, o mais curto, trata de dezoito deles, e João, o último a ser escrito, apenas sete. É fácil chegar a uma conclusão bastante lógica.
Marcos, o primeiro a ser escrito, é o que dá mais detalhes do caso do endemoninhado, gastando 20 versos (eu sei que essa divisão é bem mais recente que o texto original, mas serve para nossa comparação). Lucas, o evangelho contemporâneo ao de Mateus, usa 14 versos, e seu relato é mais parecido com o de Marcos. Mateus, talvez por ser o que mais contém milagres, resumiu mais, apenas sete versos, embora contando que havia também outro endemoninhado. João, o último a ser escrito, provavelmente considerou que todos já conheciam essas histórias e preferiu enfatizar assuntos ainda inéditos ou pouco conhecidos, como por exemplo, o longo sermão na última ceia. Por isso ele “pula” a maioria dos milagres já contados pelos outros evangelistas, inclusive esse do(s) endemoninhado(s). Mas há outros que só ele conta e os demais, não – água transformada em vinho, o paralítico de Betesda, o cego de nascença e a pesca milagrosa depois da ressurreição. São fraudes? Invenções que os outros desconheciam? A moeda na boca do peixe está só em Mateus, assim como a cura de dois cegos na Galiléia, e também a cura de um mudo; já o cego de Betsaida e o surdo-mudo em Decápolis, só Marcos menciona; e o homem com hidropisia, os dez leprosos e a mulher curvada, só Lucas. E daí? João não fala nada da transfiguração, mesmo tendo estado diretamente envolvido. Isto invalida o testemunho de algum deles? As parábolas idem: alguns evangelistas contam umas, outros não; alguns contam as mesmas dos outros, mas as palavras de um não são 100% iguais às dos outros. Entretanto, o ensinamento é igualzinho em qualquer dos relatos.
Marcos, Mateus e Lucas não se contradizem no episódio de Gadara, na terra dos gerasenos. A diferença (e não “contradição”) é o número de endemoninhados. Mateus, apesar de dizer que havia outro possesso, omite certos detalhes: as correntes com que os prendiam, há quanto tempo, onde viviam (apenas que “vieram dos sepulcros”, as tais cavernas?); não cita o nome “Legião”, nem o(s) ex-possesso(s) calmo(s) logo depois. Ele não escrever isto quer dizer que não aconteceu? É contraditório? Ou simplesmente que ele não achou interessante detalhar tanto, pois ainda tinha muito para contar? Talvez ele quisesse passar logo adiante, já que tinha em mente escrever muita coisa ainda. É possível que ele soubesse que outro evangelista já havia dado essas informações. Veja aqui o quadro comparativo que eu fiz. Leia o azul com o azul, vermelho com vermelho e assim por diante; compare texto com texto.
Ora, depois de explicarmos a questão geográfica e a contextual, não sei se essa diferença entre os relatos é suficiente para dizer que a narrativa é falsa ou adulterada.

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