Já discutimos bastante as regras e métodos de
interpretação das Escrituras, as quais nos habilitam a entender melhor o texto
sagrado. Vimos que a tendência a alegorizar demais certas passagens podem
enganar até mesmo os teólogos mais experientes. E agora, vamos nos debruçar
sobre uma das passagens mais cruciais da Bíblia, e sua interpretação, a partir
da qual toda a nossa fé pode ser edificada, ou destruída. Trata-se do livro do
Gênesis, o primeiro da revelação de Deus ao Homem.
Hoje em dia especula-se muito sobre
quais porções da Bíblia, em especial Gênesis, seriam fatos históricos e quais
seriam apenas parábolas, alegorizações, contos e fábulas de outros povos,
alguns contemporâneos, outros mais antigos que os judeus. Não raro, ouvimos coisas
como “a criação
bíblica é um mito”,
ou “Gênesis é uma
representação lendária da mente primitiva”.
O que é mito? É uma história que
explica um aspecto da vida humana, sem nunca ter acontecido de fato. Mitos são eventos envolvendo deuses e suas relações com
os homens; mas são eventos atemporais, “a-históricos”. Com o objetivo de entretenimento,
o mito é fictício. Se ensinado como a explicação factual de um determinado
aspecto da vida, é uma mentira. C.F. Nosgen explica: “Qualquer conto não histórico, independente de como possa ter surgido,
no qual uma sociedade religiosa encontra uma parte constitutiva de seus
fundamentos sagrados, por causa da expressão absoluta de suas instituições,
experiências e idéias, é um mito”.
Religiões pagãs abundam em mitos: o de
Pandora explica o mal no mundo como resultado de uma caixa que foi aberta contra
a instrução dos deuses. O mito babilônico Enuma Elish explica a criação pela
morte e divisão de um grande monstro, Tiamat.
A Bíblia fala de mitos. No Novo Testamento, a
palavra grega é μῦθος [“mythos”], “mito”, às vezes
traduzida como “fábulas”. Mas a mensagem
bíblica não é baseada ou derivada de mitos: “Porque
não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo,
seguindo fábulas (“mythos”) artificialmente
compostas; mas nós mesmos vimos a sua majestade” - II Pedro
1:16. Ela nos adverte contra os mitos: “Nem se dêem a
fábulas” (“mythos”) - I Timóteo 1:4. E também alerta que nos últimos dias,
sob a influência de falsos mestres - podemos chamá-los de “mitologistas” - as pessoas
“desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas”
(“mythos”) - II Timóteo 4:4. Esta
profecia hoje se cumpre naqueles que antes consideravam Gênesis verdade, mas agora
dizem que é um mito.
Assim, nesta questão, há muita coisa em jogo. Se
dissermos que Gênesis (especialmente os primeiros capítulos, de 1 a 11) é um mito, a divindade
das Escrituras a sua qualidade de “soprada por Deus”, conforme II Timóteo
3:16 - é negada, e assim se perde a sua autoridade, confiabilidade, clareza,
suficiência e unidade. Se Gênesis é um mito, a mensagem da Bíblia é descartada,
pois Gênesis é o fundamento da doutrina da justificação pela fé e do evangelho
da graça. Martinho Lutero disse que os dois primeiros capítulos de Gênesis são “certamente o fundamento de toda a
Escritura”. Então a questão que somos forçados a resolver é: “como devemos encarar a Escritura:
História ou Mito?”
Este mundo nunca veio à existência pela Palavra de
Deus (Gênesis 1).
A raça humana nunca se originou a
partir de um homem, Adão, que foi criado pela mão de Deus a partir do pó, e de
uma mulher, Eva, feita pela mão de Deus a partir de uma costela do homem (cap.2).
O pecado e a morte nunca entraram no mundo
pelo homem ter comido o fruto proibido,
instigado por Eva e pela serpente (cap.3).
Se o relato não é histórico, a queda também não é.
Nunca houve o desenvolvimento da
agricultura, pastoreio, música e metalurgia (Cap.4).
Nunca houve um dilúvio universal (caps.6-8).
Referindose à tentação de Eva pela serpente,
Lutero escreveu: “Através de Moisés [o
Espírito Santo] não nos dá alegorias
tolas, mas Ele nos ensina sobre os eventos mais importantes, os quais envolvem
Deus, o homem pecador e Satanás o originador do pecado. Vamos, portanto, estabelecer
em primeiro lugar que a serpente é uma serpente de verdade, mas que foi
possuída e tomada por Satanás, que está falando por meio da serpente” . Um
pouco mais tarde, refletindo sobre os três primeiros capítulos, Lutero comentou:
“Nós tratamos todos esses fatos em seu
significado histórico, que é o seu único e real significado”. E acrescentou:
“Ninguém pode falhar em ver que Moisés
não tinha a intenção de apresentar alegorias, mas simplesmente de escrever a
história do mundo primitivo”.
Ou existe alguém que se atreve a negar
que Cristo e Seus apóstolos viam as pessoas e os eventos de Gênesis como
históricos? E que ensinavam a igreja do Novo Testamento a considerá-los como tais,
em Mateus 19:39; João 8:44; Mateus 24:37-41; Romanos 5:12-21; I Coríntios
11:7-12; I Timóteo 2:12-15; II Pedro 3:56; Atos 17:26 etc.? Ninguém deriva a
concepção de Gênesis 1-11 como mito por uma exegese sólida dessas passagens do
Novo Testamento.
A origem disto é fácil de identificar: é
o desejo de acomodar o pensamento da Igreja ao mundo, para moldar o
cristianismo à cultura mundana. Abandonou-se a separação entre os ímpios e o
povo de Deus, entre a mente dos inimigos de Deus e a mente de Cristo. Para ser
respeitável e atraente para o homem moderno e educado, as igrejas devem adaptar
seu pensamento, sua confissão - e sua Escritura - à teoria científica mais
recente. E uma vez que a teoria dominante é a evolução darwiniana, Gênesis - e
por conseguinte, toda a revelação bíblica - deve dançar conforme a música
ateísta (e no meu modo de ver, pelo iluminismo do século XVIII). O teólogo
católico Zachary Hayes dá uma justa advertência: “Não se pode abrir a possibilidade de defender alguma forma de evolução
sem abrir uma caixa de Pandora. Aqueles que abrem essa caixa devem estar
dispostos a assumir a responsabilidade de lidar com os tipos de problemas que
surgem em muitas áreas da Teologia”.
A história da criação traz a dependência de
Israel em Deus, e a confissão de que seu Deus é o único Deus. A história da
queda é o reconhecimento de que o homem é inerentemente pecador e precisa de
redenção.
Mas essa aplicação boa, espiritual e útil não
vale nada, porque tudo passa a ser mito. E se é mito, eu devo dar ao Gênesis
tanta atenção quanto eu dou à caixa de Pandora, a Marduk ou a Chapeuzinho
Vermelho (como alega Richard Dawkins e seu “monstro do espaguete voador”)!
Gênesis é um fato histórico, doa a quem doer, e
apresenta a origem de todas as coisas: o universo, incluindo o tempo e o espaço;
o Homem; o matrimônio e a família; a ordem básica de seis dias de trabalho e um
de descanso, o pecado, a maldição e morte, não só para a raça humana, mas
também para a criação, o evangelho e o Salvador prometido, a antítese entre
piedoso e ímpio, as nações, etc.
Quando dizemos que Gênesis 2 (um homem e uma mulher como uma só carne) é um mito, estamos afirmando que como isto não é um relato factual da instituição histórica do casamento pelo próprio Criador, então não sou obrigado por qualquer lei de fidelidade no casamento. Eu posso viver como e com quem desejar, no casamento ou fora dele!
Quando o pregador que lê Gênesis 3 como
mito me diz que eu preciso de um redentor, eu preciso perguntar: “Será que o Homem realmente caiu?”; pois
se ele não caiu de fato, eu não preciso de um redentor, mas sim evoluir.
Se Gênesis é mítico, então Cristo também o
é. Pois o pensamento que coloca Gênesis como uma palavra humana também deve
colocar os evangelhos como palavra humana. Se nunca houve uma queda histórica
de um Adão histórico, não há necessidade de um Jesus histórico. Sem Adão, sem
Cristo! Jesus Cristo vem ao mundo pela promessa de Gênesis 3:15: “E porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua
descendência e a sua descendência; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar”. Mas a quem Deus dirigiu essa palavra, essa “promessa-mãe”?
Para a serpente! Negue Gênesis 3, negue a serpente, e você aniquilará a
promessa de Jesus Cristo: sem serpente, sem Salvador! Um Cristo mítico não
morreu por nossos pecados. Um Cristo mítico não pode perdoar nossos pecados
reais. Um Cristo mítico não irá conosco através do vale da sombra da morte. Um
Cristo mítico não vai ressuscitar nosso corpo do túmulo. Somente o Cristo
histórico fez e vai fazer essas coisas. O Cristo histórico faz com que o
Gênesis seja histórico, e a fundação de Si mesmo e a Sua obra.
A doutrina do juízo de Deus também depende de
Gênesis. Mas se Gênesis é um mito, o juízo também o é. Se Gênesis não é
história, todas essas doutrinas estão perdidas.
Os ateus sabem disso, e tentam fazer como
Dawkins: convencer o mundo de que Gênesis é um mito, porque assim fazendo,
desacreditam toda a Palavra de Deus. E o pior é que muitos cristãos já
embarcaram nessa canoa furada.
Entretanto, a ciência não pode analisar,
julgar e confirmar os eventos registrados em Gênesis. A própria criação foi um
milagre. Como um milagre ela é pouco acessível às ferramentas de investigação
do cientista, assim como é a ressurreição de Jesus.
Ademais, entre a obra da criação de Deus, como
descrito em Gênesis 1 e 2, e a ciência atual, há duas barreiras que o esforço
científico não pode superar: a queda com a maldição que está presente em toda a
criação, e o dilúvio que destruiu todo aquele mundo, dando uma forma
inteiramente nova a esta Terra - Gênesis 3:17, 18; II Pedro 3:6. Nenhum
instrumento científico pode voltar atrás antes do dilúvio. O mundo de antes do
dilúvio não pode sequer ser conhecido por qualquer teoria científica. Apesar de
evidências que têm sido encontradas ao redor do planeta, as pessoas ainda
duvidam do dilúvio universal e dizem que “tudo continua como
desde o princípio da criação” (II Pedro 3:1-7). No dilúvio (Gênesis
6-8), histórico, real e maior do que apenas uma inundação local na região do
Tigre e do Eufrates, o “mundo de então
pereceu”! Acabou, foi extinto! O único conhecimento que alguém
tem, ou pode ter, do mundo antes do dilúvio é aquele dado pelo próprio Deus em
Gênesis.
Para nós, a questão se a Bíblia, e em especial
Gênesis, é história ou mito, não é intelectual nem acadêmica.
Nas igrejas sadias, as crianças pequenas
aprendem a responder algumas perguntas como:
“Quem criou todas as coisas?” - R: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”.
“Como é que nós sabemos sobre essa criação?” -
R: “Deus nos diz sobre isso em Sua
Palavra, a Bíblia”.
“Quem são os nossos primeiros pais?” - R: “Adão e Eva”.
“Como é que Satanás veio a Eva?” - R: “Ele usou a serpente para falar com Eva”.
“O que Deus prometeu?” - R: “Um Salvador, para nos salvar dos nossos pecados”.
Queremos que estas crianças vão para o céu. Se elas
vierem a duvidar de todas essas respostas como se fossem mito, irão para o
inferno como incrédulos. Seja quem for o responsável - pais, pregadores,
professores, teólogos - seria melhor que uma pedra de moinho lhes fosse
amarrada ao pescoço e jogados nas profundezas do mar. Esses pequeninos, que não
sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, acreditam na
historicidade de Gênesis.
“Se não vos converterdes e não vos
fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mateus 18:3).
Resumo do livro Gênesis 1-11 – História ou Mito?
de David Engelsma
(http://livros.gospelmais.com.br/files/livro-ebook-genesis-1-11-historia-ou-mito.pdf)491.030