Gostam de
citar, por exemplo, a cura do(s) cego(s) de Jericó (Mateus 20:29, 30 e
seguintes): “Saindo eles de Jericó, seguiu-o uma grande
multidão; e eis que dois cegos, sentados junto do caminho, ouvindo que
Jesus passava, clamaram, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós”,
etc.
Este
relato é paralelo ao de Marcos 10: 46 e seguintes: “Depois chegaram a
Jericó. E, ao sair ele de Jericó com seus discípulos e uma grande multidão,
estava sentado junto do caminho um mendigo cego, Bartimeu filho de Timeu”,
etc. Mas os críticos gostam de comparar também com Lucas 18:35 (“Ora, quando ele ia chegando a Jericó, estava um cego
sentado junto do caminho, mendigando”).
O
argumento que ateus e incrédulos em geral gostam de usar é o seguinte: como
pode ser verdade esse relato contraditório? Era um cego ou dois? Jesus e os
discípulos estavam chegando ou saindo da cidade?
Para mim isto é
procurar chifre em cabeça de cavalo.
Mateus,
Marcos, Lucas e João escreveram relatos confiáveis e complementares da vida de
Jesus Cristo. Como naturalmente acontece em relatos paralelos mas
independentes, há diferenças nos relatos. Mateus foi testemunha ocular do
evento. Como um dos discípulos, ele estava no local e relatou o que presenciou.
Ele cita dois cegos, mas não menciona seus nomes. Lucas escreveu o evangelho
que leva o seu nome cerca de 20 anos após o ocorrido, com base no testemunho dos
que haviam visto essas coisas in loco.
Como bom jornalista (e melhor do que muitos blogueiros de hoje) ele cita a
fonte: “Visto que muitos têm empreendido fazer uma
narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, segundo no-los transmitiram os que desde o princípio foram
testemunhas oculares e ministros da
palavra, também a mim, depois de haver investigado tudo cuidadosamente desde o
começo, pareceu-me bem, ó excelentíssimo Teófilo, escrever-te uma narração em
ordem, para que conheças plenamente a verdade das coisas em que foste
instruído” (Lucas 1:1-4, grifo meu).
Assim,
Lucas fala de um cego apenas, e como Mateus, também não cita seu nome. Já Marcos,
que também escreveu anos depois do fato, menciona apenas um, e especificamente
identifica o cego pelo nome Bartimeu. Nota: segundo a tradição e de acordo com
Eusébio de Cesaréia, Marcos escreveu conforme Pedro lhe relatou. E Pedro foi,
como Mateus, testemunha ocular do episódio.
Esta diferença é uma contradição? É claro que
não. Por exemplo, se eu viajar para outra cidade com minha esposa, três pessoas
poderiam falar a verdade sobre essa viagem com relatos diferentes, mas não
contraditórios. Uma pessoa poderia dizer que “um casal veio aqui”, enquanto
outra diria que “uma mulher nos visitou”. Uma outra pessoa poderia até dizer
que eu estive lá e citar meu nome. Todas estariam falando a verdade, mas
relatando fatos de uma maneira diferente. Assim temos que Jesus curou dois
cegos, sendo um deles conhecido pelo nome Bartimeu. E se Pedro, enrolado lá no
meio da multidão, viu apenas um cego, o Bartimeu, e contou o fato para Marcos
escrever dessa forma, e Mateus, quem sabe em outro ponto, viu dois cegos, mas
não achou interessante citar o nome de um deles apenas? Lucas pode ter ouvido
outra testemunha que também se lembrava de ter visto apenas um cego.
Passou na TV o documentário sobre João
Saldanha, o polêmico e folclórico treinador da seleção de 1970. João Saldanha
era um cri-cri, chato de galocha, e de personalidade forte. O programa deu
destaque ao fato bastante pitoresco que foi quando o Botafogo venceu o Bangu na
final do campeonato carioca de 1967. Surgiram rumores de que o bicheiro Castor
de Andrade, dono do Bangu, havia subornado o goleiro botafoguense, Manga, para que
“entregasse o jogo”. Saldanha ficou desconfiado quando percebeu que bolas
fáceis eram rebatidas pelo goleiro, que parecia nervoso na partida.
Eventualmente, o Botafogo, que tinha grandes craques como Gérson, Jairzinho,
Roberto e Paulo César “Caju”, que mais tarde seriam tricampeões mundiais no
México, ganhou o jogo e ficou com a taça.
Logo após o jogo, num programa de TV, Saldanha
disse que Castor de Andrade havia subornado Manga e houve tumulto ao vivo. A
imprensa sensacionalista provocou então o goleiro botafoguense, perguntando a
ele se ia fazer alguma coisa, ou se ia aceitar calado as acusações.
Estava marcado um jantar na quarta-feira
seguinte. Criou-se um clima de animosidade, e espalhou-se que o jogador iria
dar uma lição no treinador/comentarista. Saldanha, que não era bobo, foi armado
e chegou ao local do jantar mais cedo. Ficou de tocaia e verificou que havia
seguranças à espreita. Quando Manga apareceu, Saldanha o surpreendeu, entrando
por outra porta, e apontou a arma para ele. Agora é que a coisa fica
interessante.
Jairzinho conta que João Saldanha sacou um
revólver enorme, a maior arma que ele já tinha visto na vida. Um jornalista
presente diz que era um revólver calibre 32, cano curto. Outro jornalista diz
que Saldanha atirou para o alto. Saldanha diz que atirou para o lado, para não
acertar em ninguém, e para que quando Manga corresse ele acertasse o seu
traseiro, para humilhá-lo. Diz ainda que o tiro saiu na direção de seu sobrinho
Bebeto de Freitas, hoje também um conhecido personagem do mundo esportivo, mas na
época apenas um garoto. Gérson diz que ele atirou para o chão. Um jornalista
diz que Manga pulou um muro duas vezes mais alto que ele, mas Saldanha diz que
Manga correu para dentro do recinto. O editor de imagens do filme foi muito
feliz ao colocar todas essas versões na mesma seqüência, propositalmente.
Pergunto a vocês: alguém duvida que esse episódio
de fato aconteceu? Seria invenção de alguém - ou de todos? Há contradições? Há.
Quem está certo? Todos estão certos. Jairzinho diz que o revólver era o maior
que ele já havia visto, mas outros dizem que a arma era pequena. Depende do
ponto de vista. Um diz que o tiro foi para o alto, outro que foi para baixo,
outro que foi para o lado. E se foi um tiro para cima, um para baixo e um para
o lado? Percebe como o ângulo determina o relato? Em todo caso, o resumo é o
seguinte: houve uma confusão envolvendo João Saldanha e o goleiro Manga, tiros
foram disparados, mas ninguém morreu. O resto é detalhe, que não desqualifica
nem o episódio nem as testemunhas.
Mas tem
mais.
Voltemos ao Evangelho.
Voltemos ao Evangelho.
A segunda explicação para o caso do(s) cego(s é um pouco mais difícil, mas também ajuda a elucidar a propalada "contradição". Onde aconteceu a cura - na chegada ou
na saída de Jericó? Mateus e Marcos dizem que Jesus estava saindo de Jericó
quando encontrou o(s) cego(s), mas Lucas diz: “Aconteceu
que, ao aproximar-se ele de Jericó...”
(18:35). Para explicar essa aparente contradição, precisamos apenas achar uma
explicação plausível dos fatos relatados. Neste caso, há, pelo menos, duas:
(1) Alguns sugerem que o problema vem na tradução aqui
da palavra grega usada por Lucas (eggizo). Dizem que esta palavra pode significar o ato de chegar
perto de um local, ou pode significar simplesmente estar próximo. Neste caso,
se ele acabou de sair de Jericó, estaria próximo.
(2) Uma outra
sugestão envolve
um fato histórico de existirem na época de Jesus a antiga cidade de Jericó,
aquela mesma cujo muros caíram no tempo de Josué, e ao mesmo tempo, uma nova
Jericó construída por Herodes, o Grande. Assim, Jesus teria saído da cidade
antiga (conforme Mateus e Marcos) enquanto aproximava-se da nova cidade
(conforme Lucas).
De modo que o relato dos evangelhos, em
especial no caso do(s) cego(s) de Jericó, nada tem de contraditório: os relatos
são apenas complementares.
Como na
hoje antológica briga de João Saldanha e Manga, naquele dezembro de 1967.
(com
informações de http://www.estudosdabiblia.net/bd15_08.htm)
137050