segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Qual é a sua motivação?

Há algum tempo participei de uma reunião de oração. As pessoas presentes, todas cristãs sinceras, na hora de colocar seus pedidos, me surpreenderam. Uma ou outra pedia para interceder pela conversão de um parente e pela cura de um conhecido, mas a maioria pedia por bens materiais. Alguém pediu oração para poder “vender logo a casa”, pois tencionava comprar outra maior e melhor. Outra pessoa disse que era para orarmos para que conseguisse uma boa empregada doméstica. Um outro anunciou que pretendia morar no Exterior, pois “não aguentava mais este país”. Por fim, alguém pedia para que Deus abençoasse esta nação e tirasse as pessoas más do poder, colocando outras “tementes a Deus, segundo o coração de Deus”.
Aparentemente, tudo muito bacana, tudo muito certo. Fiquei pensando naquilo tudo, e só depois percebi que aquelas pessoas, sinceramente, estavam pedindo a Deus que os abençoasse segundo os seus próprios desejos. Suas orações eram centradas neles mesmos, na satisfação do que entendiam como sendo as suas necessidades pessoais. Totalmente fora daquilo que a Bíblia ensina aos cristãos como devem agir. Vejamos alguns pontos.
No Sermão do Monte – e em outras partes – Jesus ensina que devemos viver não para satisfazer a nós mesmos, mas a Deus (fazendo a Sua vontade) e ao próximo. O centro deve ser não a gente mesmo, mas tudo deve ser para “o outro”. O próximo. É o que significa “quando alguém te pedir a túnica, dá também a capa; se alguém te pedir para caminhar com ele uma milha, vai com ele duas”. E também “se alguém te bater numa face, oferece a outra”.
Mas essas pessoas estão seguindo outra lógica. Elas seguem uma lógica apropriada (do ponto de vista humano e carnal) ao seu segmento social, mais do que à sua situação de cristãos, de cidadãos de outro reino que não o deste mundo. Seguem uma ideologia (no sentido original da palavra, no sentido crítico, “ferramentas simbólicas voltadas à criação e/ou à manutenção de relações de dominação”, link aqui) de uma classe média pequeno-burguesa, aquele tipo que pensa que o capitalismo é o melhor dos sistemas econômicos, esquecendo-se de que, na maioria, eles mesmos são empregados, funcionários que trabalham para um patrão e, por mais que tenham bons salários e ocupem boas posições na escala social, ainda assim são assalariados. Eles ainda não perceberam que o lucro gerado pelo seu trabalho vai todo para o bolso do patrão, por que seus salários sejam bons salários, ainda assim, são assalariados. O que recebem nunca os fará ricos como aos patrões. E essas pessoas, dominadas mentalmente que são pela ideologia burguesa de seus patrões,  seguem o mesmo ideário, próprio dos banqueiros, industriais e grandes empresários, crendo que isso é normal. Vejam só.
Os banqueiros, industriais e grandes empresários visam o lucro. Em última instância, visam o seu próprio bem. Tudo o que fazem e investem é para seu próprio prazer, para seu lazer, para seu próprio desfrute. Até certo ponto isto é lógico e legítimo. O que não é lógico é os seus empregados e funcionários acharem que devem seguir a mesma cartilha, por mais bem situados que sejam (ou estejam, no momento). 
Em que consiste esse conjunto de idéias e pensamentos? Consiste nos valores burgueses, expressos no seu modo de vida, seus gostos, seus hábitos e suas escolhas, como veremos.
As pessoas da reunião que mencionei no primeiro parágrafo seguem essa ideologia. Ao pediram intercessão para que conseguissem “uma boa empregada”, o que querem dizer com isso? Você vai se espantar com a minha conclusão, mas eu o desafio a me mostrar outra interpretação para essa “oração”: o que mais elas querem senão alguém que trabalhe mais e ganhe menos? Alguém que lhes dê menos aporrinhações, que reivindique menos direitos (como dias de folga, aumentos de salário, licença-maternidade, férias, décimo-terceiro salário e Fundo de Garantia, dentre outras coisas). Alguém que falte menos ao trabalho, ainda que um filho adoeça ou aconteça uma greve dos ônibus ou do metrô. Alguém que obedeça a todas as suas (patrões) vontades. Alguém que esteja sempre à disposição; repetindo, por um salário não maior do que o da empregada anterior. Mais lucro. Ou, como se convencionou dizer, melhor custo/benefício.
Se essas pessoas fossem realmente cristãs, elas agiriam de outra forma, eu penso. Seu pedido de oração seria diferente.
Por exemplo, poderiam pedir a Deus que lhes desse condições de contratar uma empregada doméstica, de que de fato necessitam, mas para lhe pagar um salário maior do que o que pagavam à empregada anterior. Poderiam seguir o mandamento de Jesus, o da segunda milha, no sentido de que, quando a empregada saísse de férias, concedessem a ela, graciosamente, mais uma semana de descanso remunerado. Quando a empregada ligasse dizendo que se atrasaria por causa da greve dos ônibus ou do metrô, dissessem a ela que tirasse o dia de folga. Quando viajassem para Miami, como sempre fazem a ponto de querer morar lá, que levassem junto a empregada, não para lhes carregar as malas ou lhes passar as roupas, mas para se divertir, conhecer outro país, adquirir mais cultura (se é que em Miami tem cultura).
História da vida real, verídica, que ouvi de uma cristã que trabalhava como doméstica em casa de outros cristãos, segundo ela, “ricos”: como ela trabalhava de segunda a sexta o dia todo, e sábado só até meio-dia, nesse dia ela tinha trabalho dobrado. Tinha que, por exemplo, fazer o dobro de comida para que os patrões não precisassem ir para a cozinha no domingo “depois do culto”. Eles não poderiam, pães-duros que eram, gastar um pouquinho num restaurante (talvez por isso fossem ricos). Ah, e um detalhe: na segunda-feira, o trabalho também era dobrado, pois a pia da cozinha tinha tanta louça suja que ia até o teto, pois ninguém se dignava a lavar sequer um copo que tivesse usado durante o fim de semana. Essa empregada cristã, quando saiu desse “emprego”, quase teve que ir à justiça para receber o que lhe era devido. Eu pergunto: esse tipo de gente pode se considerar cristã? Estabelecendo uma relação de quase-escravidão com uma empregada, e mais, uma irmã em Cristo? É isso que é fazer a vontade de Deus? É assim que Jesus ensina que devemos tratar o próximo?
Quer outro exemplo, que talvez explique este primeiro?
Quando pessoas assim, de forma farisaica, oram a Deus para que “tire as pessoas más do governo e coloque outras de acordo com o coração de Deus”, parecem preocupadas com os destinos da nação, mas na verdade querem dizer: “Deus, tira esse governo do poder porque nós não gostamos dele; coloca no poder uma pessoa de acordo com o nosso coração, conforme a nossa ideologia política e econômica, de acordo com o que pensa a nossa classe social”. Essa ideologia político-econômico-social é a mesma por trás da alegada crise institucional atual. Esses que foram às ruas protestar contra o governo, com a desculpa de não tolerar mais corrupção, são o mesmo tipo de gente que
elegeu e apoiou uma pessoa do naipe de Eduardo Cunha, dito evangélico que usou uma igreja para receber propinas milionárias. Esses cristãos, que dizem que o governo mentiu, apoiam gente como Silas Malafaia, que comemorou nas redes sociais a eleição de Cunha como presidente da Câmara, dizendo aos quatro ventos “agora vão ter que nos engolir”. Mas agora cinicamente diz que nunca o apoiou, agora que o deputado “evangélico”, que (diziam) “vai transformar a nação”, cai em desgraça e em descrédito. Pessoas assim não desejam que se cumpra a vontade de Deus sobre a nação. Eles querem que se cumpra a sua própria vontade. 
No fundo, aqueles cristãos, como se fossem banqueiros, industriais e grandes empresários, não suportam ver no governo um operário, um metalúrgico, ou uma mulher. Lembra da definição crítica de “ideologia”? Ela fala de “relações de dominação”. Essas relações de dominação não são só de uma classe (a burguesia, a que essas pessoas pensam pertencer) sobre outra (os operários, empregados, funcionários e assalariados em geral, classe a que, na verdade, elas pertencem)! E que é a razão de não aceitarem um operário, mas em massa irem na onda de um Collor ou de um FHC, bem-nascidos, com pedigree, estudados, falam vários idiomas. Mesmo que seus governos tenham sido desastrosos, com inflação de dois dígitos, desemprego idem, e pasmem, preço da passagem aérea literalmente nas nuvens. Na época desses ilustres governantes, nossos irmãos mais abastados também viajavam de avião. É verdade que gastavam relativamente mais. Mas, em contrapartida, não dividiam as aeronaves com pessoas de classes “mais baixas”. Eles, no fundo, querem a volta desses tempos gloriosos. Mesmo que com inflação alta e desemprego idem. Presidente operário, operário dividindo aeroporto? Nem pensar.
A relação de dominação também acontece no plano racial. Darei apenas um exemplo para você pensar. Por que nas novelas as empregadas domésticas são sempre negras? Sabemos que as emissoras de TV são propriedade de grandes grupos burgueses, e como tal, veiculam a sua visão de mundo, que inclui, dentre outras pragas, o racismo. E também o preconceito contra evangélicos, que mesmo assim continuam fiéis à sua programação... se é menos nas novelas, é muito em relação ao jornalismo”. Tem irmão aí que acredita mais no Jornal Nacional do que nas epístolas paulinas.
A dominação social repercute nas igrejas. Via de regra, pobres não ocupam cargos de liderança. Geralmente, diáconos e chefes de departamentos são pessoas que depositam os envelopes mais gordos no gazofilácio. É importante manter os bacanas na igreja. Você é inteligente e já percebeu o por quê disso. É raro ver um pobre liderando um rico, mesmo no rebanho do Senhor. Estou mentindo?
Essa dominação também se verifica na relação homem/mulher. Por isso muitos detestam uma mulher-presidente! Dizem acerca da presidente da nação todo tipo de piada maliciosa e de mau gosto, daquelas que não se ouvia nem na extinta geral dos estádios de futebol. Deletam da sua Bíblia as ordenanças que determinam a intercessão pelas autoridades investidas de poder. Para essas pessoas, a ideologia - enquanto forma peculiar de ver o mundo e perceber a realidade objetiva - tem mais força do que a sã doutrina dos evangelhos!
A motivação daqueles irmãos não é Cristo, não é a vontade de Deus. A motivação deles é a sua própria vontade, o seu próprio desejo, o seu próprio ventre. A ideologia é a única coisa que não é deles: é da classe que os domina e da qual eles pensam fazer parte. E suas orações refletem suas motivações.
Depois daquele dia citado no primeiro parágrafo, tenho procurado gastar as horas correspondentes na leitura de um bom livro e, melhor ainda, da Bíblia Sagrada. Quero ter outro tipo de motivação para minhas orações. A vontade de Deus, já que a minha própria vontade não vale um tostão furado.

Qual é a sua motivação?

Quem pode discernir os próprios erros? Absolve-me dos que me são ocultos. Guarda também o teu servo da arrogância, para que não me domine; então, serei íntegro e ficarei limpo de grande transgressão. Que as palavras da minha boca e a meditação do meu coração sejam agradáveis na tua presença, SENHOR, minha rocha e meu redentor! (Salmo 19:12-14).


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