Há
algum tempo participei de uma reunião de oração. As
pessoas presentes, todas cristãs sinceras, na hora de colocar seus pedidos, me
surpreenderam. Uma ou outra pedia para interceder pela conversão de um parente
e pela cura de um conhecido, mas a maioria pedia por bens materiais. Alguém
pediu oração para poder “vender logo a
casa”, pois tencionava comprar outra maior e melhor. Outra pessoa disse que
era para orarmos para que conseguisse uma boa empregada doméstica. Um outro
anunciou que pretendia morar no Exterior, pois “não aguentava mais este país”. Por fim,
alguém pedia para que Deus abençoasse esta nação e tirasse as pessoas más do
poder, colocando outras “tementes a Deus,
segundo o coração de Deus”.
Aparentemente, tudo muito bacana, tudo muito certo. Fiquei pensando naquilo tudo, e
só depois percebi que aquelas pessoas, sinceramente, estavam
pedindo a Deus que os abençoasse segundo os seus próprios desejos. Suas orações
eram centradas neles mesmos, na satisfação do que entendiam como sendo as suas
necessidades pessoais. Totalmente fora daquilo que a Bíblia ensina aos cristãos
como devem agir. Vejamos
alguns pontos.
No Sermão do Monte – e em outras partes – Jesus ensina que devemos
viver não para satisfazer a nós mesmos, mas a Deus (fazendo a Sua vontade) e ao próximo. O centro deve ser não a gente mesmo, mas tudo deve
ser para “o outro”. O próximo. É o que significa “quando alguém te pedir a túnica, dá também a
capa; se alguém te pedir para caminhar com ele uma milha, vai com ele duas”. E
também “se alguém te bater numa face, oferece a outra”.
Mas essas pessoas estão seguindo outra lógica. Elas seguem uma
lógica apropriada (do ponto de vista humano e carnal) ao seu segmento social,
mais do que à sua situação de cristãos, de cidadãos de outro reino que não o
deste mundo. Seguem uma ideologia (no sentido original da palavra, no sentido
crítico, “ferramentas simbólicas voltadas
à criação e/ou à manutenção de relações de dominação”, link aqui) de uma classe
média pequeno-burguesa, aquele tipo que pensa que o capitalismo é o melhor dos
sistemas econômicos, esquecendo-se de que, na maioria, eles mesmos são empregados,
funcionários que trabalham para um patrão e, por mais que tenham bons salários
e ocupem boas posições na escala social, ainda assim são assalariados. Eles ainda não perceberam que o lucro gerado pelo seu trabalho vai todo para o bolso do patrão, por que seus salários sejam “bons salários”, ainda assim, são assalariados. O que recebem nunca os fará “ricos” como aos patrões. E essas
pessoas, dominadas mentalmente que são pela ideologia burguesa de seus patrões, seguem o mesmo ideário, próprio dos banqueiros, industriais e grandes
empresários, crendo que isso é normal. Vejam
só.
Os banqueiros, industriais e grandes empresários visam o lucro.
Em última instância, visam o seu próprio bem. Tudo o que fazem e investem é
para seu próprio prazer, para seu lazer, para seu próprio desfrute. Até certo
ponto isto é lógico e legítimo. O que não é lógico é os seus empregados e
funcionários acharem que devem seguir a mesma cartilha, por mais bem situados que
sejam (ou estejam, no momento).
Em que consiste esse conjunto de idéias e pensamentos? Consiste nos valores burgueses, expressos no seu modo de vida, seus gostos, seus hábitos e suas escolhas, como veremos.
Em que consiste esse conjunto de idéias e pensamentos? Consiste nos valores burgueses, expressos no seu modo de vida, seus gostos, seus hábitos e suas escolhas, como veremos.
As pessoas da reunião que mencionei no primeiro parágrafo seguem
essa ideologia. Ao pediram intercessão para que conseguissem “uma boa
empregada”, o que querem dizer com isso? Você vai se espantar com a minha
conclusão, mas eu o desafio a me mostrar outra interpretação para essa
“oração”: o que mais elas querem senão alguém que trabalhe mais e ganhe menos?
Alguém que lhes dê menos aporrinhações, que reivindique menos direitos (como dias de folga, aumentos de salário, licença-maternidade, férias, décimo-terceiro salário e
Fundo de Garantia, dentre outras coisas). Alguém que falte menos ao trabalho,
ainda que um filho adoeça ou aconteça uma greve dos ônibus ou do metrô. Alguém
que obedeça a todas as suas (patrões) vontades. Alguém que esteja sempre à
disposição; repetindo, por um salário não maior do que o da empregada anterior. Mais lucro. Ou, como se convencionou dizer, melhor custo/benefício.
Se essas pessoas fossem realmente cristãs, elas agiriam de outra
forma, eu penso. Seu pedido de oração seria diferente.
Por exemplo, poderiam pedir a Deus que lhes desse condições de
contratar uma empregada doméstica, de que de fato necessitam, mas para lhe pagar um salário
maior do que o que pagavam à empregada anterior. Poderiam seguir o mandamento
de Jesus, o da segunda milha, no sentido de que, quando a empregada saísse de
férias, concedessem a ela, graciosamente, mais uma semana de descanso
remunerado. Quando a empregada ligasse dizendo que se atrasaria por causa da
greve dos ônibus ou do metrô, dissessem a ela que tirasse o dia de folga.
Quando viajassem para Miami, como sempre fazem a ponto de querer morar lá, que
levassem junto a empregada, não para lhes carregar as malas ou lhes passar as
roupas, mas para se divertir, conhecer outro país, adquirir mais cultura (se é
que em Miami tem cultura).
História
da vida real, verídica, que ouvi de uma cristã que trabalhava como doméstica em
casa de outros cristãos, segundo ela, “ricos”: como ela trabalhava de segunda a
sexta o dia todo, e sábado só até meio-dia, nesse dia ela tinha trabalho
dobrado. Tinha que, por exemplo, fazer o dobro de comida para que os patrões
não precisassem ir para a cozinha no domingo “depois do culto”. Eles não
poderiam, pães-duros que eram, gastar um pouquinho num restaurante (talvez por
isso fossem ricos). Ah, e um detalhe: na segunda-feira, o trabalho também era
dobrado, pois a pia da cozinha tinha tanta louça suja que ia até o teto, pois ninguém
se dignava a lavar sequer um copo que tivesse usado durante o fim de semana.
Essa empregada cristã, quando saiu desse “emprego”, quase teve que ir à justiça
para receber o que lhe era devido. Eu pergunto: esse tipo de gente pode se
considerar cristã? Estabelecendo uma relação de quase-escravidão com uma
empregada, e mais, uma irmã em Cristo? É isso que é fazer a vontade de Deus? É assim que Jesus ensina que devemos tratar o próximo?
Quer outro exemplo, que talvez explique este primeiro?
Quando
pessoas assim, de forma farisaica, oram a Deus para que “tire as pessoas más do governo e coloque outras de acordo com o
coração de Deus”, parecem preocupadas com os destinos da nação, mas na
verdade querem dizer: “Deus, tira esse
governo do poder porque nós não gostamos dele; coloca no poder uma pessoa de
acordo com o nosso coração, conforme a nossa ideologia política e econômica, de
acordo com o que pensa a nossa classe social”. Essa ideologia político-econômico-social é a mesma por trás da alegada crise institucional
atual. Esses que foram às ruas protestar contra o governo, com a
desculpa de não tolerar mais corrupção, são o mesmo tipo de gente que
elegeu e apoiou uma
pessoa do naipe de Eduardo Cunha, dito evangélico que usou uma igreja para
receber propinas milionárias. Esses cristãos, que dizem que o governo mentiu,
apoiam gente como Silas Malafaia, que comemorou nas redes sociais a eleição de
Cunha como presidente da Câmara, dizendo aos quatro ventos “agora vão ter que nos engolir”. Mas agora cinicamente diz que
nunca o apoiou, agora que o deputado “evangélico”, que (diziam) “vai transformar a nação”, cai em
desgraça e em descrédito. Pessoas assim não desejam que se cumpra a vontade de Deus sobre a nação. Eles querem que se cumpra a sua própria vontade.
No fundo, aqueles cristãos, como se fossem banqueiros,
industriais e grandes empresários, não suportam ver no governo um operário, um
metalúrgico, ou uma mulher. Lembra da definição crítica de “ideologia”? Ela
fala de “relações de dominação”. Essas relações de dominação não são só de uma
classe (a burguesia, a que essas pessoas pensam pertencer) sobre outra (os
operários, empregados, funcionários e assalariados em geral, classe a que, na
verdade, elas pertencem)! E que é a razão de não aceitarem um operário, mas em
massa irem na onda de um Collor ou de um FHC, bem-nascidos, com pedigree, estudados, falam vários
idiomas. Mesmo que seus governos tenham sido desastrosos, com inflação de dois
dígitos, desemprego idem, e pasmem, preço da passagem aérea literalmente nas
nuvens. Na época desses ilustres governantes, nossos irmãos mais abastados
também viajavam de avião. É verdade que gastavam relativamente mais. Mas, em
contrapartida, não dividiam as aeronaves com pessoas de classes “mais baixas”.
Eles, no fundo, querem a volta desses tempos gloriosos. Mesmo que com inflação
alta e desemprego idem. Presidente operário, operário dividindo aeroporto? Nem
pensar.
A relação de dominação também acontece no plano racial. Darei
apenas um exemplo para você pensar. Por que nas novelas as empregadas
domésticas são sempre negras? Sabemos que as emissoras de TV são propriedade de grandes grupos burgueses, e como tal, veiculam a sua visão de mundo, que inclui, dentre outras pragas, o racismo. E também o preconceito contra evangélicos, que mesmo assim continuam fiéis à sua programação... se é menos nas novelas, é muito em relação ao “jornalismo ”. Tem irmão aí que acredita mais no Jornal Nacional do que nas epístolas paulinas.
A dominação social repercute nas igrejas. Via de regra, pobres não ocupam cargos de liderança. Geralmente, diáconos e chefes de departamentos são pessoas que depositam os envelopes mais gordos no gazofilácio. É importante manter os bacanas na igreja. Você é inteligente e já percebeu o por quê disso. É raro ver um pobre liderando um rico, mesmo “no rebanho do Senhor”. Estou mentindo?
Essa dominação também se verifica na relação homem/mulher. Por
isso muitos detestam uma mulher-presidente! Dizem acerca da presidente da nação
todo tipo de piada maliciosa e de mau gosto, daquelas que não se ouvia nem na
extinta geral dos estádios de futebol. Deletam da sua Bíblia as ordenanças que
determinam a intercessão pelas autoridades investidas de poder. Para essas
pessoas, a ideologia - enquanto forma peculiar de ver o mundo e perceber a realidade objetiva - tem mais força do que a sã doutrina dos evangelhos!
A motivação daqueles irmãos não é Cristo, não é a vontade de
Deus. A motivação deles é a sua própria vontade, o seu próprio desejo, o seu
próprio ventre. A ideologia é a única coisa que não é deles: é da classe que os
domina e da qual eles pensam fazer parte. E suas orações refletem suas motivações.
Depois daquele dia citado no primeiro parágrafo, tenho procurado gastar as horas correspondentes na leitura de um
bom livro e, melhor ainda, da Bíblia Sagrada. Quero ter outro tipo
de motivação para minhas orações. A vontade de Deus, já que a minha própria vontade não vale um tostão furado.
Qual é a sua motivação?
Quem pode discernir os próprios erros?
Absolve-me dos que me são ocultos. Guarda também o teu servo da arrogância,
para que não me domine; então, serei íntegro e ficarei limpo de grande
transgressão. Que as palavras da minha boca e a meditação do meu coração sejam
agradáveis na tua presença, SENHOR, minha rocha e meu redentor! (Salmo 19:12-14).
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