terça-feira, 17 de março de 2015

Como o cristão deve reagir frente a um governo corrupto?

Virou moda, não apenas na mídia e nas redes sociais como também dentro da Igreja Cristã reclamar e bradar aos quatro ventos contra a corrupção, real ou imaginária, propagada nos grupos de Whatsapp em fake news  intermináveis. Que ficam pululando já por mais de dez anos: de vez em quando elas voltam.. Sermões e
homilias se repetem, ecoando pelos blogs e posts no Facebook, no Twitter, principalmente no Whatsapp, e onde mais for possível “botar a boca no trombone”. Líderes religiosos e leigos de repente se tornaram guardiões da ética, da probidade e da transparência, querendo colocar corruptos na cadeia, fuzilar traficantes, fechar o Congresso e espancar os ministros do Supremo. Transformaram-se todos, de uma hora para outra, em profetas que, à moda de Elias e João Batista, vociferam contra o poder político, numa verdadeira cruzada moralizadora.
Mas até que ponto essa motivação pela ética é de fato real? Isto é, qual seria a razão por trás do surto moralizador que faz a todos quererem incorporar o espírito de Elias ou de João Batista?
Antes de tudo, é preciso esclarecer qual era o papel dos profetas nos tempos bíblicos, e também dentro da Igreja e sua relevância para o mundo.
Houve um tempo em que o governo de Deus se manifestava em duas esferas, a civil e a religiosa, em um reino monárquico – mas de cunho teocrático, onde as leis divinas também serviam como lei civil. É por isso que algumas vezes as admoestações dos profetas do Velho Testamento extrapolavam a esfera religiosa e faziam menções a situações de crise social ou econômica (ver Amós 2:6-8; 3:10; 4:1 etc.).
No Antigo Testamento alguns profetas sofreram perseguições por trazer a mensagem divina. O ofício do profeta era de âmbito nacional. Quando Deus levantava um profeta, conferia-lhe a missão de falar em Seu Nome para toda a nação e até para povos estranhos (como Jonas). 
Deus permitiu, naquele momento histórico peculiar, que os profetas abordassem, de vez em quando, assuntos alheios à religião, até mesmo para que as profecias de cunho não-religioso, que se cumpririam em curto prazo, pudessem servir de prova para as profecias de cunho religioso (que são mais importantes por envolver a salvação do gênero humano) – as quais deviam se cumprir muito depois, especialmente no que diz respeito ao Messias. Desta forma, a destruição do Templo, a dispersão dos judeus, a conversão dos pagãos e outras profecias que se cumpriram relativamente em curto prazo serviram como uma prova certa de que também as profecias ainda não-cumpridas também se cumpririam – e se cumprirão a seu tempo (como a vinda do Messias, Sua crucifcação, o Anticristo, a ressurreição dos mortos etc.). Esse tipo de profecia de “curto alcance” pode ser visto em Isaías caps. 36 e 37.
Mas essas situações eram específicas do reino de Israel, do governo teocrático. Ou seja, muito distante do Estado Laico característico dos governos modernos, pós-Revolução Francesa. Uma grande diferença se nota entre o exercício do poder político naqueles tempos e hoje. Os profetas no antigo Israel lidavam com os reis de forma dura e às vezes rude. Apontavam claramente os delitos cometidos pelos reis e povos, lançando-lhes na face, sem temor, as verdades mais humilhantes, procurando apenas obedecer a Deus e amando somente a verdade (cf. I Samuel 15,17; II Samuel 12,7; 24,13; II Crônicas 21,11; I Reis 14,7; 18,18; 21,19; II Reis 1; II Crônicas 16,7; I Reis 22; II Crônicas 19,1; II Reis 3,13; 20; Jeremias 21; 22; 24; Daniel 4; 5; etc.).
Depois do exílio babilônico, quando do restabelecimento de Israel, a difícil situação socio-econômica gerou um ambiente de crise social, cujas injustiças foram denunciadas inicialmente por Amós, indo até a época de Malaquias, cronologicamente, cerca de 400 a.C. Esse período, diferentemente do anterior, foi caracterizado pelo sofrimento e marginalização dos profetas. De homens dignos de reverência passaram a ser vistos com hostilidade, porque sua mensagem ia de encontro aos interesses escusos das lideranças religiosas e políticas (Hebreus 11:36-38).
O plano de Deus era que houvesse cooperação entre profetas e sacerdotes, mas estes últimos tendiam a aderir ao liberalismo e deixavam de protestar contra a decadência. O livro de Malaquias é uma dura advertência dos profetas contra os sacerdotes, os verdadeiros ladrões do dízimo (e não o povo, como se tenta fazer crer hoje em dia). Leia mais sobre isto aqui. Os sacerdotes muitas vezes concordavam com a situação reinante, e sua adoração a Deus resumia-se a cerimônias e liturgias. O profeta, por outro lado, ressaltava o modo de vida, a conduta e as questões morais. Repreendia constantemente os que apenas cumpriam com os deveres litúrgicos. Irritava, importunava, denunciava, e sem apoio humano defendia justas exigências e insistia em aplicar à vida os eternos princípios de Deus. Era ensinador da ética, reformador moral e inquietador da consciência humana. Desmascarava o pecado e a apostasia, procurando despertar a um viver realmente santo.
Quando chegamos no Novo Testamento,  há uma transição no ministério do profeta. Vemos João Batista, tido por muitos como o último profeta do Antigo Testamento, pelo caráter de sua pregação – denunciou as mazelas dos líderes religiosos e políticos da nação, como antes dele Ageu, Malaquias e principalmente Elias, mas também anunciou o Messias, como Isaías. E quando a Igreja é instituída, o ministério dos profetas se revela um dom de Deus para a edificação do Corpo de Cristo. No Novo Testamento os profetas não perderam a preeminência. Mas, diferentemente de antes, não mais atuam ungindo reis. Não mais participam do governo, mas juntamente com os apóstolos e outros ministérios, são as colunas da Igreja. Seu ministério é muito mais em âmbito interno, porque tudo que se precisa saber acerca das nações e do governo humano já está revelado. Leia, por favor, o Salmo 2 e Apocalipse 11:10, 17-18; também o cap. 17:12-16. O governo humano, as nações, suas instituições, sua política, sua economia, suas leis, tudo jaz (i.e., descansa, se apóia) no Maligno (I João 5:19), e por isso não há outro caminho senão a destruição.
I Coríntios 12: 27 -29 e Efésios 4.11-13 atestam o caráter de edificação da Igreja que acompanha o ministério dos profetas nesta era. O Senhor continua a levantar e a usar seus porta-vozes para revelar a sua mensagem ao seu povo. Podem eventualmente aconselhar governos, pessoas influentes, admoestar e até mesmo criticar, tendo como padrão a Palavra de Deus, mas não podem se deixar levar por suas próprias preferências pessoais. E este, penso, é um dos maiores erros da Igreja de nossos dias.
O que ocorre é um grave problema no entendimento do papel da Igreja no mundo. Jesus disse que o papel dos salvos era propagar a Sua Palavra, pregar o Evangelho (i.e., as boas-novas da salvação). Evidentemente, isso haveria de impactar e transformar o mundo, como de fato ocooreu nos primeiros séculos. Mas depois de algum tempo surgiu a noção errônea de que a Igreja deveria governar o mundo em nome de Cristo, uma doutrina comumente chamada de dominionismo, e nós já discutimos aqui, aqui e aqui, para ficarmos só nesses exemplos.  
Essa doutrina, embora eminentemente católica na sua origem, tem desdobramentos na igreja evangélica, uma vez que muitos pastores crêem nela com todas as suas forças. Daí essa idéia se desdobrar pelas igrejas, e a partir de certo momento, muitos passaram a se arvorar em arautos de Deus e tentar influenciar - em suas próprias palavras - governos e governantes, e conquistar cidades e nações “para Deus”.
Quando não conseguem, põem-se a criticar o governo e os governantes que não lhes agradam, dizendo-se “profetas de Deus”, quando no fundo são apenas profetas de si mesmos.
Muitos pastores e líderes são sinceros, e imbuídos de um forte senso de mora, ética e honestidade, querem de fato que a nação seja um exemplo para todo o resto do mundo. Como qualquer cidadão de bem, ficam triste quando vê notícias sobre corrupção e dilapidação do patrimônio nacional. Mas, como qualquer cidadão, estão sujeitos ao momento histórico e ao contexto social, político e cultural em que foram formados, o que, na maioria das vezes, significa serem conservadores, ideologicamente à direita no espectro político, avessos ao socialismo – mesmo que às vezes nem saibam direito o que é. Veja bem, não estou dizendo que é certo ou errado estar à direita, ao centro ou à esquerda, ou em qualquer outra divisão que se queira adota – o que quero dizer é que os cristãos – líderes, leigos, com cargo ou sem cargo – devem primeiro se questionar se estão contra ou a favor do governo atual por questões ligadas à ética, honestidade, transparência, querer o melhor para a nação etc., ou se são contra ou a favor apenas porque gostam ou não gostam de quem está no poder, no momento.
Senão, vejamos. Já até discuti isso antes, aqui, por ocasião dos protestos de 2013. Um monte de pastores se assumiu protestante de fato e saiu em defesa das manifestações de então, dizendo que tinha que ir pra rua mesmo. OK, até aí tudo bem. Se achamos que algo está errado, graças a Deus que vivemos numa democracia e podemos reclamar. Graças a Deus e a quem veio antes de nós e lutou por restabelecer um estado democrático, porque antes de 1985 vivíamos numa ditadura militar onde quem discordava do governo, o presidente mandava “prender e arrebentar” – palavras do general Figueiredo, o último ditador. Nessa época, não sei de nenhum líder evangélico que saísse em defesa de protestos e manifestações contra o regime de exceção. Pelo contrário, naquela época, era comum os líderes evangélicos (que ainda não ostentavam esse título pomposo e se contentavam em ser chamados apenas de “pastor”) costumavam pregar que deveríamos obedecer às autoridades, porque elas foram estabelecidas por Deus (cf. Romanos 13:1,2).
Sim, mas quando questionávamos “e se o governo for injusto”, um governo que tortura e mata seus opositores, além de transparência zero nas contas, recebíamos como resposta que não, não deveríamos ser rebeldes. Deus, a Seu tempo, resolveria isso e tiraria do governo as pessoas injustas.
Mas às vezes a coisa se inverte totalmente de lado. Dependendo do governo do momento, não só podemos, mas devemos nos revoltar contra a injustiça e a corrupção, como se fosse coisa nova. Se o governo é do agrado do conservador, então relativiza-se Romanos 13:1 e 2, e entra em cena Provérbios 29:2 (“Quando os justos se engrandecem, o povo se alegra, mas quando o ímpio domina, o povo geme”), que aliás, foi usado para pedir votos para Marina Silva. Como a dizer que, se o governo for exercido por cristãos, tudo será só maravilhas, oh glória. Esquecendo-se de que o país já foi governado por pelo menos dois evangélicos, Café Filho (1954) e Ernesto Geisel (1974-79), e não se tem registro de que a situação tenha sido de alívio para todo mundo. Aliás, o período de Geisel foi onde mais recrudesceram as prisões, torturas e mortes do regime verde-oliva. Então, confesso que não sei até que ponto o estímulo a “ir pra rua”, partindo dos púlpitos modernos, realmente tem a ver com o desejo de justiça, ética, transparência, fim da corrupção, ou até onde é meramente um discurso de classe, político-partidário, ideológico, de um segmento que simplesmente apoia determinado político.
Mais uma vez – isto é um direito do cidadão, o de se posicionar contra, a favor ou com neutralidade ou até mesmo indiferença diante de situações específicas. Agora, querer assumir o papel de profeta, de Elias e de João Batista, como se fosse um paladino da justiça, apenas para esconder preferências pessoais, partidárias, classistas e de caráter ideológico e político, e pedir intervenção militar, volta da ditadura, fechamento do Congresso e da Suprema Corte, não posso aceitar de jeito nenhum. É dominionismo, em maior ou menor grau – simplesmente desejo de poder, de querer “governar em nome de Deus”, o que já discuti antes em vários posts anteriores, doa a quem doer. Vá aqui mesmo em “pesquisar neste blog” que você acha.
Se isso fosse um desejo genuíno de justiça social, probidade, ética, tudo de bom... esses líderes teriam se manifestado antes.
Bem antes.
No tempo dos generais, por exemplo.
Ou no tempo dos anões do orçamento.
Não teriam defendido Collor ou um genocida, misógino, racista, admirador de torturadores.
E por aí vai.

Com informações adicionais de:
http://www.apazdosenhor.org.br/profhenrique/licao7-dem-2tr14-o-ministerio-de-profeta.htm

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