sábado, 31 de janeiro de 2015

Qual é o pior, Noé ou Moisés?

Calma.
Não é que o maior profeta do judaísmo seja ou tenha sido uma pessoa pior do que o patriarca que construiu a arca. Nem vice-versa. É que o filme que retrata a história do Êxodo sob a ótica do diretor Ridley Scott consegue superar, em heresias e invenções bizarras, o outro de Darren Aronofsky, que o precedeu em alguns meses. Já muito se discutiu sobre o cinema ser uma visão artística e, portanto, poder comportar certas licenças poéticas. Eu discordo um pouco, pois o cinema, pelo menos o americano, diferentemente do europeu (que é visto por seus realizadores como obra de arte) é eminentemente um produto industrial. E como tal, segue as regras do mercado. Busca atingir certos objetivos de venda (bilheteria superar o custo de produção já é um bom sinal, e o que passa disso – merchandising, licenciamentos, vendas para TV, DVD, blu-ray etc. é mais que bem vindo). Procura atingir um duvidoso “gosto médio”, aquela parcela da audiência que podemos classificar como “medíocre” no sentido exato da palavra – a que está “na média”. E por estar nessa “média”, não tem muito senso de valor estético ou artístico, está interessada apenas na diversão, no “fast food”.
Vamos combinar uma coisa: ambos extrapolam, e muito, o texto original, ou seja, o texto bíblico foi em grande parte desrespeitado, tido como apenas uma “leve inspiração”, que serve mais para dar às pessoas dúvidas sobre o caráter e a vontade de Deus do que criar pelo menos um interesse pela Bíblia. Trata-se a Palavra de Deus como um conto de fadas, uma coleção de mitos antigos.
Vejamos. O Noé do filme, ao contrário do Noé bíblico, não entendeu direito a mensagem que Deus mandou dar ao povo de sua época. Não pregou a possibilidade de salvação a ninguém, e ainda por cima quis matar membros de sua família!
O filme procura fazer uma média com evolucionistas e com os criacionistas, ao apresentar uma versão mezzo-pepperone/mezzo-calabresa da origem da vida: Deus criou o mundo, deu corda e foi pescar, deixando que as criaturas “evoluíssem” por si próprias. 
O uso de uma pele de cobra enrolada no braço sugere que o tephilim judeu tem uma origem no mínimo estranha. Por que alguém haveria de usar uma coisa tão sinistra como os restos da criatura que semeou a destruição e o pecado na Humanidade?
Nem vou discutir muito, por ora, a questão dos “gigantes de pedra”, cuja aparição deixa a entender que os anjos caídos serão redimidos, e ainda por cima, por suas próprias boas intenções e boas obras. Veremos isso depois quando discutirmos os nefilins e os “gigantes da antiguidade”.
Em nenhuma parte da Bíblia há a menor sugestão de que Noé tenha recebido ajuda de “gigantes de pedra”, ou nephilins, ou qualquer outra coisa, para construir a arca. É apenas uma explicação para o fato de que a arca deveria ser feita rapidamente, quando, ao contrário, a Bíblia diz que ela demorou um tempão para ser concluída (obviamente para dar tempo aos contemporâneos de Noé para se converterem). Isso é, na verdade, a dificuldade para se crer que os patriarcas viviam muito mais tempo do que os homens modernos (veja mais aqui, aqui e aqui).
Tubalcaim entrando na arca por uma passagem lateral é outro absurdo, pois sabemos pela Bíblia que ninguém se salvou, fora a família de Noé. Tudo bem que Tubalcaim morre no filme, mas não há espaço para se acreditar que alguém poderia “pegar carona” na arca (como no telefilme tosco com Jon Voight no papel do patriarca, foto logo mais abaixo).
Além do mais, a família de Noé no filme tem apenas 6 pessoas. Além de faltarem as esposas de dois de seus filhos, um deles ainda foge para longe (talvez o diretor tenha misturado a história com a de Caim, ver Gênesis 4:16: Então saiu Caim da presença do Senhor, e habitou na terra de Node, ao oriente do Éden). Isto deixa no ar um monte de dúvidas, como: com quem os filhos mais jovens de Noé se casaram? Para que tenham se casado e tido descendentes, de acordo com o filme o dilúvio não poderia ter sido universal. E se não foi universal, qual a necessidade de se juntar aquela bicharada toda na arca? Em algum lugar devem ter sobrado animais, assim como devem sobrado algumas pessoas, dentre as quais as futuras esposas dos outros filhos de Noé... quanto mais se mexe, pior fica. Veja que ao se questionar a veracidade e autenticidade do texto de Gênesis você coloca em cheque TODA a Bíblia e seus ensinos centrais, como o pecado, o juízo e a redenção! A coisa é séria!
Mas “Êxodo – Deuses e Reis” consegue ser ainda pior... Moisés agindo como guerrilheiro e revolucionário, provocando atentados e guerrilhas (um afago aos judeus ortodoxos e sionistas em geral?) é totalmente contrário à Bíblia, porque ela diz que ele era “varão mui manso” (Números 12:3). Tudo bem que ele matou um sujeito, mas Bíblia também é clara ao relatar que não era um soldado, e sim um feitor de escravos que açoitava um hebreu (Êxodo 2:11-12).
A sua fúria cessou quando ele viu a presença de Deus na sarça ardente.  Mas esse episódio no filme dá a entender que foi uma alucinação decorrente de uma pancada na cabeça... Nada sobre “tirar as sandálias dos pés”, porque o lugar era santo (Êxodo 3:5).
O “deus” que aparece para Moisés como um “amiguinho imaginário” é uma piada. Tudo bem que se procurou fugir da imagem de um velho barbudo ou de efeitos especiais (como no filme “Os Dez Mandamentos”, de 1956, com Charlton Heston e Yul Brinner nos papéis principais), mas o menino deste filme de agora, além de confuso nas suas “ordens”, é muito chato.
E é risível a discussão de Moisés com “Deus” acerca de quais artigos deveriam constar da “lei”. Moisés chega a dizer que se não concordasse com elas nem se daria ao trabalho de escrevê-las na pedra!
Aliás, homens discutindo com Deus de “tu para tu” são bastante comuns em filmes – é impossível para o Homem natural aceitar ser submisso. Vimos isso no telefilme sobre Abraão, onde o patriarca, ao receber de Deus a ordem para sacrificar Isaque, grita: “Não! Isaque não!”, o que, se fosse verdade, desqualificaria Abraão como “o pai da fé”. Isso eles não conseguem entender, que Abraão obedeceu incondicionalmente a ordem de Deus, por mais “absurda” que pudesse parecer. Esse Moisés é a mesma coisa. Tenho para mim que isso de “humanizar” os personagens bíblicos começou com “A Última Tentação de Cristo”, filme de 1988, dirigido por Martin Scorsese e com roteiro de Paul Schrader (ambos mestres em filmes violentos com “heróis sem caráter”). Baseado no romance homônimo de Níkos Kazantzákis, publicado em 1951, retrata um Cristo que não sabe bem a que veio, e que fica surpreso quando, instigado pelos apóstolos, manda Lázaro sair da tumba. Ele mesmo não havia pensado nisso, e quando Lázaro ressurge envolto em panos, “Cristo” fica surpreso, como se pensasse “funciona mesmo”! A partir daí virou moda “humanizar” heróis da Bíblia, como se eles não fossem humanos... deu no que deu.
Neste Exodus”, Jetro já usava as roupas de sacerdote muito antes de aparecer a Lei, dando a entender que Moisés as copiou para os hebreus depois (ao contrário, Deus é que instituiu todos os paramentos, e antes não havia nada parecido); ver Êxodo 28:14-43.
É bem verdade que a história da sua adoção foi respeitada. É verdade que a Bíblia nada diz sobre a infância e juventude de Moisés, e a sua carreira militar é até plausível. Como eram, aliás, os pendores arquitetônicos do Moisés de Charlton Heston. Naquele filme há histórias paralelas que poderiam ter acontecido, sem nenhum prejuízo ao relato bíblico, por exemplo, Josué salvando a mãe verdadeira de Moisés, e sendo o pivô do crime cometido por este. Ou os futuros rebeldes israelitas já criando caso desde o início, mostrando seu “mau-caratismo”, instigando o povo ao pecado. Isso, na verdade, pouco importa, porque não está em contradição com a Bíblia. Mas se Moisés tivesse treinado revolucionários, com certeza a Bíblia relataria, até porque, no filme, eles falham miseravelmente. Seria uma lição e tanto o próprio Moisés (que escreveu o relato do Êxodo) mostrar que a tentativa humana fracassa, mas quando Deus entra no negócio a coisa funciona.
Seria... se as pragas não fosse tratadas como fenômenos naturais fortuitos, meros acidentes ambientais (à exceção da morte dos primogênitos, que ninguém até hoje consegue explicar com base na “ciência”). Já discutimos antes que a excepcionalidade e a coincidência das pragas não poderiam, em hipótese alguma, ser uma seqüência natural – veja sobre isto aqui. O filme até mostra um conselheiro “ambientalista” do Faraó explicando como “a natureza produziu as pragas”!
Ainda que o “deus-menino” emburrado pareça controlar tudo à sua maneira, de que serviria fazer um monte de prodígios se os egípcios não reconhecessem a sua mão por trás dos eventos? Muitos deixam escapar um importante significado das pragas, cujo propósito foi, além de forçar a libertação dos hebreus, justamente mostrar que o poder de Deus é superior ao dos homens, dos magos, e das entidades que eles adoravam como deuses.  As 10 pragas tiveram grande importância sobre os habitantes do Egito. Deus estava desafiando os “deuses egípcios”. É simples. 
Por que rãs, gafanhotos, sangue, chuva de pedras? O Deus de Israel estava se revelando ao Seu povo e ao império egípcio. Cada praga era direcionada a uma divindade, conforme a credibilidade do povo egípcio em confiar nesses “falsos senhores”, como veremos a seguir.
Água transformada em sangue (Êxodo 7:14-24) – A primeira praga causou desonra ao deus Hápi. A morte dos peixes no Nilo foi também um golpe contra a religião local, pois certas espécies de peixes eram realmente veneradas e até mesmo mumificadas.
Rãs (Êxodo 8:1-15) – A rã, tida como símbolo da fertilidade e do conceito egípcio da ressurreição, era sagrada para a deusa Heqt. Assim, a praga das rãs trouxe desonra a esta deusa.
Piolhos (Êxodo 8:16-19) – A terceira praga resultou em os sacerdotes-magos reconhecerem a derrota, quando se viram incapazes de transformar o pó em insetos. Atribuía-se ao deus Tot a invenção da magia ou das artes secretas, mas nem mesmo essa entidade pôde ajudar os sacerdotes-magos.
Moscas (Êxodo 8:20-32) – A linha de demarcação ficou nitidamente traçada daqui em diante. Enquanto enxames de moscas invadiam os lares dos egípcios, os israelitas na terra de Gósen não foram atingidos. Nenhum “deus” pôde impedí-la, nem mesmo Ptah, “criador do universo”, ou Tot, senhor da magia.
Peste sobre bois e vacas (Êxodo 9:1-7) – Humilhou deidades tais como Seráfis (Ápis), deus sagrado de Mênfis do gado, a deusa-vaca Hator e a deusa-céu Nut, imaginada como uma vaca com as estrelas afixadas na barriga. Todo o gado do Egito morreu, mas o de Israel sobreviveu.
Feridas sobre os egípcios (Êxodo 9:8-12) – Deus nesta praga zombou da deusa e rainha do céu do Egito, Neite. Moisés jogou o pó para o alto, e surgiu um tumor ulceroso na pele do povo. Os magos também pegaram a doença e não puderam adorar a sua deusa e padroeira. Israel novamente foi poupado.
Chuva de pedras (Êxodo 9:13-35) – A forte saraivada envergonhou os deuses que supostamente controlavam os elementos naturais, como Ísis (deusa da água) e Osiris (do fogo).
Gafanhotos (Êxodo 10:1-20) – Uma derrota dos deuses que, segundo se pensava, garantiam abundante colheita. Shu, deus do ar, e Sebeque, deus-inseto, não puderam fazer nada.
Escuridão total (Êxodo 10:21-23) – Com esta praga Deus derrubou o deus principal do Egito, Rá, o deus-sol. A palavra Faraó significa sol; ele era tido como um deus. O Egito ficou nas trevas durante três dias, mas Israel tinha luz.
Morte dos primogênitos (Êxodo 11-12) – inclusive entre os animais dos egípcios, que resultou na humilhação suprema. Os governantes do Egito chamavam a si mesmos de deuses, filhos de Rá ou Amom-Rá, mas depois disto todos souberam que o Deus de Israel era o Senhor. Deus destruiu todo deus falso do Egito. Na morte do primogênito Deus mostrou que Ele tem na Sua mão o poder da morte e da vida. Enquanto o Faraó tinha pretensão de ser adorado, de ser uma divindade, e o primogênito era em potencial um faraó (pois era o herdeiro do trono), Deus desmascarou a falsa deidade tanto do Faraó como de seu filho.
Mas nada disso se vê em produções hollywoodianas modernas. Claro. Não admitiriam isso nem debaixo de pragas... que aliás, é o que vai acontecer durante a tribulação que se aproxima (ver Apocalipse 9:20-21 e 16:9-11).
Dito tudo isso, por mais que se queira dizer que filmes são “licenças poéticas”, sou de opinião de que Bíblia não admite tais devaneios. Prefiro ficar com a “versão original”, pois deduzi que, ao ver essas “obras de arte”, joguei fora umas quatro horas de meu tempo e um bom punhado de dinheiro.

Nota: esta parte final, das 10 pragas e os deuses do Egito, veio de um estudo na Internet cujo autor não me lembro. Se o próprio autor ou alguém me avisar eu adiciono o devido crédito.

593610