Isso provoca
um curto-circuito no Evangelho de Cristo e na posição profética da Igreja, coisa
que nunca esteve tão ameaçada na face da Terra como nos tempos em que o fundamentalismo
moderno se arvorou em única forma legítima de fé cristã.


Assim que
classificar-se como evangélico no Brasil significa inserir-se no Cristianismo
Ocidental, com suas tradições teológico-doutrinárias baseadas na Reforma
Protestante do século XVI. De fato, desde o século X já se dizia que era
preciso se reaproximar do Cristo dos evangelhos, com a Igreja cada vez mais afetada
pela promiscuidade política do clero – então uma aristocracia territorial com
interesses arraigados e práticas como compra de cargos, guerras e assassinatos.
O papado tornou-se um Estado territorial com interesses próprios e forças
armadas. Dos conflitos entre o povo pobre e a aristocracia eclesiástica, bem
como dos Estados Papais com os diversos reinos europeus, surgiram uma série de
movimentos político-teológicos mais ou menos violentos, que culminaram na
Reforma: de um lado os fiéis a Roma, de outro as várias igrejas que surgiram:
anglicanos na Inglaterra; luteranos em alguns estados alemães;
zwinglio-calvinistas na Suíça, Alemanha e França, Escócia e Holanda, além dos
grupos dissidentes na Inglaterra; e anabatistas onde quer que houvessem
revoluções camponesas.

Os calvinistas
ingleses (puritanos) fuzilaram seu rei. Na Holanda lutaram para se tornarem
independentes da Espanha. Os franceses (huguenotes) lutaram por séculos para
praticar sua fé diferente da romana. Os hussitas na Boêmia tinham garantido com
canhões, um século antes de Lutero, poderem tomar a ceia à sua maneira, e
celebrar o culto em tcheco. Na Escócia, liderados por John Knox, os calvinistas
lutaram contra a rainha para poder estabelecer suas convicções religiosas,
fazendo surgir a igreja presbiteriana. Diversos desses inconformistas migraram
para as colônias britânicas na América, especialmente a região da Nova
Inglaterra, fugindo dos conflitos europeus, e estabelecendo o paraíso do self-government congregacional.
No Brasil,
os protestantes começaram a se estabelecer por exigência do comércio com a
Inglaterra em 1810, e a partir de 1824 para receber imigrantes não católicos
(principalmente alemães luteranos e suíços calvinistas). Os protestantes
brasileiros foram fundamentais para estabelecer um sistema educacional mais
moderno, abandonando a Ratio
Studiorum dos jesuítas, implantando os colégios mistos e a ênfase nas
ciências, na Educação Física e no pensamento investigativo. Protestantes
brasileiros lutaram pela desvinculação entre Igreja e Estado, implantação do
casamento civil e da cidadania plena para não-católicos.
Protestantes
brasileiros eram anti-obscurantistas, eram os únicos cristãos
que baseavam sua fé no estudo da Bíblia, desenvolvendo inclusive, por causa
disso, a ciência lingüística no Brasil. Pastores (vários deles ex-padres) eram
os únicos dispostos a viajar pelos grotões abandonados levando conforto
espiritual e boas novas de uma fé progressista – num país abandonado por Roma e
asfixiado pelo ultra-montanismo de uma igreja voltada apenas para os
bem-nascidos.
Em que lugar neste caminho
o protestantismo brasileiro se perdeu? Em que lugar
abandonou as raízes que fincava na cultura da gente simples do país? Em que
lugar abandonou as posturas progressistas que permitiram ao protestantismo
provocar a primeira fissura na hegemonia católica estabelecida pela monarquia
lusa do padroado?

Foi-se o tempo
que ser evangélico era saber cantar a quatro vozes os hinos que falavam de uma
fé singela, capaz de superar o sofrimento organizando-se em congregações
auto-geridas que estudavam as Escrituras e praticavam o amor cristão pela via
da solidariedade contagiante. Em que os evangélicos eram pessoas simples que
sabiam que o Evangelho era a mensagem do desapego aos bens, de uma ética
rigorosa do trabalho, do respeito ao próximo como manifestação do respeito a
Deus.

Neste contexto,
há quem acredite que ser evangélico hoje no Brasil é ser fundamentalista, mesmo
que para isso precise esquecer o cerne do Evangelho: a solidariedade política
radical como manifestação do amor ao próximo. Ser evangélico hoje parece que se
reduziu à panacéia do culto-show, o qual nem os outrora “tradicionais”
batistas podem se dar ao luxo de não aceitar. Ninguém

Não há nada menos
evangélico do que isso. Ser evangélico significa – ou pelo
menos deveria significar – lembrar-se do Evangelho, do Cristo dos evangelhos,
do amor ao próximo como cerne da mensagem, da pobreza apostólica, do estudo das
Escrituras, do radicalismo democrático que não aceita a autoridade
centralizada, que se exerce no congregacionalismo dentro da igreja, e na
assistência desinteressada aos pobres fora dela; na política feita não como
interesse mesquinho, mas na luta radical e democrática pelo bem comum, pela
igualdade e pela justiça.

É claro que isso
não vai acontecer. Assembléias nas igrejas viraram
instâncias de homologação de show-men que
trazem as decisões prontas para o pessoal levantar a mão. Os crentes não se dão
ao trabalho de conferir a autenticidade dos diplomas de seus pastores. Preferem
ser enganados, imaginando que ao obedecer cegamente aos “ungidos de Deus”
estarão a reservar um galardão no paraíso celestial – por mais que tal imagem
não encontre fundamento bíblico-teológico.
Ser evangélico no
Brasil de hoje deveria significar uma luta contra a desigualdade,
a miséria e a pobreza. Deveria significar não permitir que carreiristas se assumissem
como porta-vozes da igreja e da fé. Deveria significar maturidade. Deveria
significar que não se pode abandonar a função mental de crítica racional.
Estou querendo
demais?
Adaptado de um artigo
publicado originalmente por André Egg em Revista Amálgama (09/09/2010)
Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador
da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro “Arte e política no
Brasil: modernidades” (Ed. Perspectiva, 2014). http://www.revistaamalgama.com.br/09/2010/caso-piragine/
750.910