Isso provoca
um curto-circuito no Evangelho de Cristo e na posição profética da Igreja, coisa
que nunca esteve tão ameaçada na face da Terra como nos tempos em que o fundamentalismo
moderno se arvorou em única forma legítima de fé cristã.
Qualquer estudo
da história da fé cristã mostra uma religião não-conformista. Primeiro dos
discípulos e seguidores de Jesus em relação ao judaísmo tradicional e à
aristocracia do Templo, implantando um igualitarismo comunitário tão radical
que levou às perseguições romanas, à medida que a religião (de rápida difusão
no mundo Mediterrâneo) punha em cheque os fundamentos escravistas do Império.
Depois que
a religião assumiu uma estrutura hierárquica rígida fundada na autoridade
episcopal, no apoio político do Império e no estabelecimento da ortodoxia
doutrinária, nunca faltaram as dissidências e divisões – condenadas sob a pecha
de heresias, brutalmente extirpadas, ou resultando em divisões que tornaram o
cristianismo uma religião cada vez mais multi-facetada.
Assim que
classificar-se como evangélico no Brasil significa inserir-se no Cristianismo
Ocidental, com suas tradições teológico-doutrinárias baseadas na Reforma
Protestante do século XVI. De fato, desde o século X já se dizia que era
preciso se reaproximar do Cristo dos evangelhos, com a Igreja cada vez mais afetada
pela promiscuidade política do clero – então uma aristocracia territorial com
interesses arraigados e práticas como compra de cargos, guerras e assassinatos.
O papado tornou-se um Estado territorial com interesses próprios e forças
armadas. Dos conflitos entre o povo pobre e a aristocracia eclesiástica, bem
como dos Estados Papais com os diversos reinos europeus, surgiram uma série de
movimentos político-teológicos mais ou menos violentos, que culminaram na
Reforma: de um lado os fiéis a Roma, de outro as várias igrejas que surgiram:
anglicanos na Inglaterra; luteranos em alguns estados alemães;
zwinglio-calvinistas na Suíça, Alemanha e França, Escócia e Holanda, além dos
grupos dissidentes na Inglaterra; e anabatistas onde quer que houvessem
revoluções camponesas.
Em todos estes
movimentos reformadores, havia em comum a
dissidência política vestida de argumento teológico. Era a gente comum
derrubando a autoridade centralizada da igreja romana. Anabatistas contra os
dízimos e o batismo infantil, recusando o serviço militar e cargos públicos.
Luteranos abraçando o livre-exame das Escrituras e o Sacerdócio Universal de
todos os crentes, abandonando a Vulgata e adotando a Bíblia e os cantos
litúrgicos em sua própria língua, recusando-se a pagar tributos a Roma. Anglicanos
preferindo submeter-se à monarquia pátria e recusando-se obedecer ao Papa. Os
zwinglio-calvinistas abandonando toda a liturgia que não fosse encontrável na
Bíblia, queimando órgãos e livros de corais, traduzindo os Salmos para o
francês para cantá-los no culto. Em todos os lugares, luteranos, calvinistas e
anabatistas foram à guerra contra reis, príncipes e bispos, para exigir
autonomia, governo democrático nas igrejas, uma teologia e uma liturgia
voltados para o povo e os problemas de seu tempo.
Os calvinistas
ingleses (puritanos) fuzilaram seu rei. Na Holanda lutaram para se tornarem
independentes da Espanha. Os franceses (huguenotes) lutaram por séculos para
praticar sua fé diferente da romana. Os hussitas na Boêmia tinham garantido com
canhões, um século antes de Lutero, poderem tomar a ceia à sua maneira, e
celebrar o culto em tcheco. Na Escócia, liderados por John Knox, os calvinistas
lutaram contra a rainha para poder estabelecer suas convicções religiosas,
fazendo surgir a igreja presbiteriana. Diversos desses inconformistas migraram
para as colônias britânicas na América, especialmente a região da Nova
Inglaterra, fugindo dos conflitos europeus, e estabelecendo o paraíso do self-government congregacional.
No Brasil,
os protestantes começaram a se estabelecer por exigência do comércio com a
Inglaterra em 1810, e a partir de 1824 para receber imigrantes não católicos
(principalmente alemães luteranos e suíços calvinistas). Os protestantes
brasileiros foram fundamentais para estabelecer um sistema educacional mais
moderno, abandonando a Ratio
Studiorum dos jesuítas, implantando os colégios mistos e a ênfase nas
ciências, na Educação Física e no pensamento investigativo. Protestantes
brasileiros lutaram pela desvinculação entre Igreja e Estado, implantação do
casamento civil e da cidadania plena para não-católicos.
Protestantes
brasileiros eram anti-obscurantistas, eram os únicos cristãos
que baseavam sua fé no estudo da Bíblia, desenvolvendo inclusive, por causa
disso, a ciência lingüística no Brasil. Pastores (vários deles ex-padres) eram
os únicos dispostos a viajar pelos grotões abandonados levando conforto
espiritual e boas novas de uma fé progressista – num país abandonado por Roma e
asfixiado pelo ultra-montanismo de uma igreja voltada apenas para os
bem-nascidos.
Em que lugar neste caminho
o protestantismo brasileiro se perdeu? Em que lugar
abandonou as raízes que fincava na cultura da gente simples do país? Em que
lugar abandonou as posturas progressistas que permitiram ao protestantismo
provocar a primeira fissura na hegemonia católica estabelecida pela monarquia
lusa do padroado?
Suspeito que em
algum momento durante os anos 1950-60, quando missionários
fundamentalistas norte-americanos implantaram diversas instituições
para-eclesiásticas no Brasil, organizando acampamentos, fundando editoras,
livrarias, conjuntos musicais, trazendo uma fé irracional, trabalhando para
formar gerações de abestalhados/alienados que perderam o compromisso com o
país, com a fé, com o exame das Escrituras, com a liturgia, com a tradição
não-conformista do protestantismo.
Foi-se o tempo
que ser evangélico era saber cantar a quatro vozes os hinos que falavam de uma
fé singela, capaz de superar o sofrimento organizando-se em congregações
auto-geridas que estudavam as Escrituras e praticavam o amor cristão pela via
da solidariedade contagiante. Em que os evangélicos eram pessoas simples que
sabiam que o Evangelho era a mensagem do desapego aos bens, de uma ética
rigorosa do trabalho, do respeito ao próximo como manifestação do respeito a
Deus.
As primeiras manifestações
do evangelicalismo doentio puderam ser vistas no apoio inconteste ao Regime
Militar brasileiro, baseado numa leitura tacanha de Romanos 13. Não era mais
que o interesse geo-político dos EUA no tempo de Guerra Fria, que ditava o que
passava a significar o ser evangélico no Brasil. Os que ousaram ter uma
reflexão própria a respeito da realidade local, foram expurgados - o caso mais
emblemático é o do pastor presbiteriano Rubem Alves. Os luteranos e anglicanos
parece que restaram como únicos oásis diante do domínio absoluto do
fundamentalismo, que tragou todos os grupos oriundos do calvinismo (batistas,
presbiterianos, congregacionais) e suas dissidências pentecostais.
Neste contexto,
há quem acredite que ser evangélico hoje no Brasil é ser fundamentalista, mesmo
que para isso precise esquecer o cerne do Evangelho: a solidariedade política
radical como manifestação do amor ao próximo. Ser evangélico hoje parece que se
reduziu à panacéia do culto-show, o qual nem os outrora “tradicionais”
batistas podem se dar ao luxo de não aceitar. Ninguém
mais lê a Bíblia sem ser
guiado pelo pastor. Ninguém mais acha que a fé se constrói pelo estudo
criterioso. Ninguém mais acha que tem o dever de agir pelo bem comum. Ser
evangélico reduziu-se a cantar de olho fechado e mão levantada, chorar nos
“cultos” e obedecer cegamente aos pastores oportunistas que cada vez mais
abundam.
Não há nada menos
evangélico do que isso. Ser evangélico significa – ou pelo
menos deveria significar – lembrar-se do Evangelho, do Cristo dos evangelhos,
do amor ao próximo como cerne da mensagem, da pobreza apostólica, do estudo das
Escrituras, do radicalismo democrático que não aceita a autoridade
centralizada, que se exerce no congregacionalismo dentro da igreja, e na
assistência desinteressada aos pobres fora dela; na política feita não como
interesse mesquinho, mas na luta radical e democrática pelo bem comum, pela
igualdade e pela justiça.
Isso não pode ser
traduzir, de forma nenhuma, em preconceito e violência
contra quem pensa diferente. Como que fazem “pastores” de idéias tão díspares
entre si como Silas Malafaia e Paschoal Piragine, que incitam os fiéis a
não votarem no PT ou no PSOL, por serem “contra a fé bíblica”. Curiosamente,
isso é feito sem apoio em nenhum versículo bíblico (não seria difícil conseguir
um para ser apresentado de forma distorcida, mas nem a isso estão se dando mais
ao trabalho, já que ninguém lê a Bíblia mesmo). A autoridade do pastor, mesmo
que embasada em mentiras, é suficiente. Cadê o livre-exame? Cadê a autonomia
dos leigos diante do clero? Houvesse algum evangélico na igreja e o pastor em
questão seria destituído na próxima assembleia.
É claro que isso
não vai acontecer. Assembléias nas igrejas viraram
instâncias de homologação de show-men que
trazem as decisões prontas para o pessoal levantar a mão. Os crentes não se dão
ao trabalho de conferir a autenticidade dos diplomas de seus pastores. Preferem
ser enganados, imaginando que ao obedecer cegamente aos “ungidos de Deus”
estarão a reservar um galardão no paraíso celestial – por mais que tal imagem
não encontre fundamento bíblico-teológico.
Ser evangélico no
Brasil de hoje deveria significar uma luta contra a desigualdade,
a miséria e a pobreza. Deveria significar não permitir que carreiristas se assumissem
como porta-vozes da igreja e da fé. Deveria significar maturidade. Deveria
significar que não se pode abandonar a função mental de crítica racional.
Estou querendo
demais?
Adaptado de um artigo
publicado originalmente por André Egg em Revista Amálgama (09/09/2010)
Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador
da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro “Arte e política no
Brasil: modernidades” (Ed. Perspectiva, 2014). http://www.revistaamalgama.com.br/09/2010/caso-piragine/
750.910