domingo, 14 de agosto de 2011

As vacas sagradas evangélicas - parte 2

Outro dia, passeando pela blogosfera dita evangélica, vi outra “vaca sagrada”: um blog defendendo com unhas e dentes que Abraão e Jacó eram dizimistas, com base em Gênesis 14:20 e 28:22. Com isso, o rapaz dizia que, como a Bíblia conta a vida desses patriarcas resumidamente, não se pode dizer que eles deram o dízimo apenas uma vez e assim, presume-se que eles “dizimavam” regularmente – portanto, nós também.
Primeiramente, quero dizer que não tenho nada com isso: faça com o seu dinheiro o que quiser. Dê para quem quiser, o quanto quiser. Se quer dar 10% dos seus rendimentos para essa ou aquela instituição, esse ou aquele sacerdote, vá em frente e seja feliz, pois o dinheiro não traz felicidade mesmo. Agora, querer justificar isso na Bíblia, aí me dá licença que eu vou dizer umas coisas.
Faço isto aqui porque o tal blog não aceita comentários “longos”, mas não há como esclarecer o assunto em duas ou três linhas. Aqui temos espaço, graças a Deus, e paciência para ler e debater as “vacas sagradas evangélicas”, doa a quem doer. Em outros blogs não, mas aqui sim. É o seguinte.
Abraão de fato deu o dízimo. Mas supor que ele era “dizimista fiel” porque viveu muitos anos e deu o dízimo outras vezes, em outras ocasiões não relatadas nas Escrituras, é presunção, e nada mais. A Bíblia diz que, após uma ação militar, em que Abraão e seus associados venceram um inimigo, o patriarca encontrou-se com Melquisedeque e lhe deu uma parte do saque. E Jacó, ao acordar de um sonho, disse que se Deus o abençoasse daria “o dízimo de tudo”. Nada mais se sabe, a não ser que:
- foram atos voluntários. Não havia mandamento ou ordenança que obrigasse Abraão ou Jacó a dar 10% do que quer que fosse a quem quer que fosse, ainda mais por não se ter noticia de sacerdotes do Deus Altíssimo nessa época, a não ser Melquisedeque.
- Abraão não residia em Salém (a atual Jerusalém), onde Melquisedeque, além de sacerdote, era rei (um símbolo de Jesus, conf. epístola aos Hebreus); assim, onde será que Abraão entregava seu dízimo “regularmente”? E Jacó?
- Gênesis 14:20 diz que Abraão deu o dízimo de tudo. Claro que foi o dízimo do saque, e mesmo que forcemos a barra e digamos que ele deu o dízimo de tudo o que possuía (“rebanhos e gado, prata e ouro, escravos e escravas, camelos e jumentos”, Gênesis 13:2 e 24:35) – não restaria mais nada para “dizimar”. Ou ele daria o dízimo de tudo várias vezes? É óbvio que, se ele deu o dízimo de tudo que possuía, foi só uma vez. Mas o texto deixa claro que era o dízimo do saque. Abraão não recebia salários ou outros rendimentos regularmente, portanto, não havia razão para “dizimar” mais de uma vez. Jacó, idem.
- Como Abraão teria feito para dar o dízimo de escravos? Lembre-se, é o dízimo “de tudo”, e escravos estão relacionados entre seus bens.
- O dízimo de Abraão foi produto de uma ação isolada, em data e local determinados. Jacó... não sabemos onde, nem quando, nem como nem a quem “entregou o dízimo”, nem se foi mais de uma vez.
- Dízimo não era em dinheiro, era em bens. O que os defensores do dízimo se esquecem convenientemente é que a única passagem que fala em oferta financeira, Levítico 27, é claramente uma exceção à regra: se alguém, por diversas razões, não ofertasse em bens, preferindo fazer em dinheiro, resgatava o valor da oferta (boi, carneiro, farinha, etc.), com uma taxa de 20% a mais sobre o valor da avaliação. Alguém aí na igreja faz isso hoje em dia? Paga o dízimo em dinheiro com mais 20% de taxa???
- Hoje, a maioria de nós recebe salários, proventos, pensões, ou outro rendimento regularmente, e portanto, se fôssemos fazer como os patriarcas, “dar o dízimo de tudo”, o normal seria fazermos isso a cada vez que recebêssemos o salário. OK. Só que não estamos mais obrigados a isso, pois o dízimo – e outras realidades do Velho Testamento, como a circuncisão, o sábado, o sacrifício de animais – era apenas sombra do que ainda seria revelado à Igreja.
O que as pessoas precisam entender é o seguinte:
Nas diversas dispensações, que são pactos que Deus fez com o Homem, há uma série de ordenanças, cujo cumprimento resulta em bênçãos e cuja desobediência gera punições. Em cada dispensação, algumas ordenanças e promessas anteriores são mantidas, outras são substituídas, e outras simplesmente extintas, ao passo que novas ordenanças podem ser adicionadas ao pacto.
Por exemplo, na primeira dispensação, Deus disse a Adão e Eva basicamente que O obedecessem; a bênção prometida era que os seus descendentes (cf. Gênesis 1:28-30) dominassem (isto é, governassem) a terra; a desobediência traria a morte. Quando o primeiro casal desobedeceu a Deus, a morte e o pecado entraram na história da humanidade trazendo toda sorte de males (para os quais alguns como Ricardo Gondim ousam culpar a Deus, como você pode ver aqui); e Satanás usurpou o domínio, como deixou transparecer a Jesus na tentação milênios depois (cf. Mateus 4).
Na era dos patriarcas, Deus disse a Abraão, Isaque e Jacó que cressem nas promessas. Quando essa promessa se cumpriu, e a descendência dos patriarcas se materializou numa multidão tão grande como a areia do mar – como Deus dissera – uma nova aliança (ou dispensação) se inaugurou, e a Lei foi dada a Israel por meio de Moisés. Algumas práticas antigas foram mantidas – a guarda do sábado (estabelecida desde Gênesis 2:2,3); a circuncisão (desde Gênesis 17:14); animais puros e impuros (Gênesis 7:2, 8); sacrifício propiciatório (Gênesis 8:20; 22:13; 31:54; 46:1; Êxodo 3:18). Outras novas foram introduzidas – o sacerdócio levítico, por exemplo; e outras foram atualizadas, como o dízimo, que agora serviria para sustentar a tribo sacerdotal e os desvalidos, cf. Deuteronômio 14:28; 16:11; 26:12 etc. E outras determinações foram abolidas, por já serem desnecessárias: por exemplo, o “encher a terra” de Gênesis 1:28 e “não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal” de Gênesis 2:17. Isto já não fazia mais sentido.
É importante esclarecer que o que chamamos de “a Lei de Moisés” possui três núcleos:
- Lei Moral: são preceitos comuns a toda a Humanidade, como honrar os pais, fazer caridade, não cobiçar os bens alheios, evitar a usura. Quase todas as culturas possuem esse tipo de ordenanças; princípios éticos e morais que ainda perduram e são válidas para todos; Êxodo 20:1-17 e Romanos 2:14-15.
- Lei Civil/Penal: abrange a definição de crimes, como assassinato (mesmo acidental), estupro, divórcio, etc., e suas punições (multas, ressarcimentos, restituições, pena capital por apedrejamento, banimento, cidades de refúgio); leis sobre escravos, transferência de terras, heranças etc.; foram aplicadas a um determinado contexto, mas hoje não se praticam mais nem no moderno Estado de Israel (Êxodo 21:1-23:33).
- Lei Cerimonial: é a que mais nos interessa, pois trata da religião e do relacionamento dos homens com Deus, e que vigorou até João Batista, o último profeta do VT, cf. Mateus 11:13 e Lucas 16:16. Aqui se enquadram os holocaustos, sacrifícios de sangue, as ofertas pacíficas, o sacerdócio levítico, o tabernáculo (e depois o templo), os dízimos, as ofertas alçadas, a circuncisão, a primogenitura, o nazireado, a purificação ritual, os alimentos puros e os impuros, o sábado, etc. (Êxodo 24:12-31:18). Para entender o dízimo é importante ter isso em mente.
O descumprimento do pacto leva sempre ao juízo. Assim, se você insiste em cumprir partes da Lei, deve cumpri-la toda, cf. Tiago 2:10 (“Pois qualquer que guardar toda a lei, mas tropeçar em um só ponto, tem-se tornado culpado de todos”) e Gálatas 3:10 (“Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las”). Se você insiste em dar dízimo, deve antes se purificar, e também guardar o sábado, não tocar em coisa impura, inclusive mulher menstruada, não comer carne de animal impuro, circuncidar-se etc. Caso contrário, estará incorrendo em juízo. Porventura não foi o que sucedeu com os fariseus no tempo de Jesus? Davam “o dízimo de tudo”, mas odiavam o semelhante, adulteravam com os olhos, negavam a caridade aos necessitados. E muitos hoje “dizimam” servindo a Mamom, pois sua oferta é um investimento para ter prosperidade.
Os “sacerdotes” que aceitam isso são os verdadeiros ladrões de Malaquias 3:8 (“Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais, e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas”). E ainda há alguns lobos que avançam até sobre o 13º  salário das pessoas, dizendo que Paulo em I  Coríntios 16:2 “no primeiro dia da semana”, quer dizer “dizimar periodicamente”! Malandramente omitem a outra parte do verso, “cada um de vós ponha de parte o que puder”! Ladrões! Escondem II Coríntios 9:7 – “Cada um contribua segundo propôs no seu coração; não com tristeza, nem por constrangimento! Mercadores da religião!
Hoje, o véu do templo se rasgou de alto a baixo, isto é, na sua totalidade, completamente, sem retorno; foi cancelado, extinto, substituído todo aquele pacto!
Por isso Hebreus 8:13 diz:[o] novo pacto tornou antiquado o primeiro. E o que se torna antiquado e envelhece, perto está de desaparecer”; e por isso Jesus disse, ao anunciar a sua morte e ressurreição, “Este cálice é o novo pacto em meu sangue, que é derramado por vós” (Lucas 22:20). Qual é o novo mandamento desse novo pacto? “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mateus 22:37-40).
À Igreja não foi imposta a Lei, conforme lemos em Atos 15, especialmente os versos 19 e 20! Nada mais é necessário neste novo pacto sob o qual vivemos! Não mais sangue de bodes e carneiros (cf. Hebreus 9:11-15), não mais sacerdotes profissionais (I Pedro 2:9), levitas (Hebreus 6:20; 7:11); templos de pedra e tijolo (Atos 7:48; I Pedro 2:5); tudo isso foi abolido com o sacrifício totalmente suficiente de Jesus Cristo. 
Para a Igreja não há mais dízimos (não há mais templo, sacerdotes, levitas ou estruturas religiosas que mereçam ser sustentadas); circuncisão (que agora é espiritual); primogenitura, pois todos somos herdeiros com Cristo. Se não há mais nada disso, a contribuição neo-testamentária deve ser voluntária e destinada ao sustento dos desvalidos, conf. Atos 4:34-37; 6:1; 11:29,30; II Coríntios 9.
Negar isto é querer tapar o sol com a peneira de coar mosquito, só que nessa peneira tem um buraco onde passa um camelo! (Mateus 23:24). Insistir em práticas já abolidas é o mesmo que tentar recosturar o véu que Jesus rasgou na Sua morte! Se bem que tem “igrejas” que até “arca da aliança” usam em seus “cultos”: as mesmas que estão reconstruindo o “templo de Salomão”... o que mais vocês queriam?
Eu sei que é difícil, para muitos, abandonar as velhas idéias e sofismas, resultado de anos de doutrinação. Não é fácil aceitar que fomos enganados por muito tempo, crendo que Deus se agrada de dinheiro. John Maynard Keynes disse que a maior dificuldade não é aceitar novas idéias, mas escapar das velhas. É difícil mesmo abandonar velhas idéias. 
Mas uma vez que desce o entendimento, percebemos que somos livres para ofertar voluntariamente o quanto Deus colocar no nosso coração, sem obrigação de quantia ou periodicidade religiosa, sem o peso de ordenanças mortas.
A você, que ao contrário do nosso amigo blogueiro evangélico, teve paciência e disposição para ler mais de dois parágrafos, agradeço. E mais uma vez, não tenho nada com o seu dinheiro. Mas se você quer andar para trás, entrar debaixo da Lei e viver como os judeus de séculos passados, boa sorte. Eu não, pois não sou judeu e vivo em outra dispensação, a da Igreja, e por isso termino com a pergunta de Paulo a Pedro: “por que queres obrigar os gentios a viverem como judeus?” (Gálatas 2:14).
E vem mais vaca pela frente...
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