quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Kaká, o mito da caverna e a "Matrix"

Quando o jogador Kaká saiu da Renascer,  a notícia repercutiu em vários portais de notícias. A princípio, não há nada de mais nisso. Gente entra e sai de igreja a toda hora. Na minha opinião, no caso do Kaká até que demorou, e para que ninguém me chame de profeta do acontecido, eu já havia dito tempos atrás que haveria de chegar o dia em que a ficha dele iria cair e ele veria que estava sendo iludido. E assim como ele, um dos principais ajudantes do mega-pastor-marqueteiro Estevam Hernandes, o “bispo” “Zé” Bruno, também saiu recentemente, o que provocou palavras pesadas de “papai-apóstolo”. Se bem que o Zé acabou fundando a sua própria dissidência depois, o que mostra que a sua insatisfação era só birra de quem queria mandar sozinho.
Talvez por causa disto, a mulher do jogador (na época) e dublê de cantora-pastora, Caroline, resolveu esclarecer a seus seguidores no twitter  a sua saída da Renascer. “Acho engraçado a preocupação das pessoas. Deveriam olhar mais para suas próprias vidas, suas hipocrisias… Tire a trave dos seus olhos antes de falar do pequeno cisco nos olhos do seu próximo! Até mesmo dentro das famílias. Nós não estamos sem igreja, para os interessados de plantão. A igreja somos nós. Eu, meu marido e nossos filhos! Estamos em comunhão e nos assentamos à mesa do Senhor. Não se preocupem… Estamos felizes e em paz! Isso basta! Família é um bem precioso. Cuide da sua”, finalizou, com sua finesse peculiar e a educação que caracteriza, talvez, o ensino do seminário onde ela se formou “pastora” - se é que é "pastora" mesmo e se é que se formou em algum "seminário"... a verificar.
Não sei se eles ensinam que é assim que "pastores" devem tratar as ovelhas, com casca e tudo. Enfim, vai saber...
Esses fatos nos levam a uma ou duas reflexões. A primeira delas é que existem formas de comunhão e de culto alternativas às impostas pelos impérios religiosos em que algumas igrejas se tornaram. Falaremos disto e de como se “reunir à mesa do Senhor” como diz a pastorinha, em outra ocasião.
Da segunda reflexão trato agora, e é esta: mais cedo ou mais tarde, a verdade sempre vem à tona e acabamos enxergando coisas que não víamos antes, por meio do exame da Palavra. Isso me lembra uma história, uma espécie de parábola, atribuída ao filósofo grego Platão. Diz assim o mito:
Imaginemos uma caverna onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para a frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior.
A única luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Do lado de fora, há um caminho ascendente ao longo do qual homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas, projetando sombras como se fosse um palco de marionetes.
Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (simulacros de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também imaginam que toda a luminosidade possível é a que reina na caverna.
Que aconteceria se um prisioneiro conseguisse se libertar e sair da caverna? Que faria ele? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a parede, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria.
Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois ficaria inteiramente ofuscado pela luz natural. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e outras coisas, e prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade. 
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna. Primeiro, ficaria desnorteado pela escuridão, mas depois contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o. E se mesmo assim ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo.
Texto original: Platão, A República, v. II p. 105 a 109 (Extraído do livro "Convite à Filosofia", de Marilena Chauí).
Alguns me criticaram por que eu comentei a respeito desse mito. Acontece que a gente não está aqui pregando heresia, nem usando textos apócrifos. Mas o fato é que, se olharmos esse texto sem preconceitos, ficaremos espantados de verificar como um filósofo grego poderia ter descrito tão bem o que ocorre no processo de conversão cristã. Pois é exatamente o que acontece. Quando conhecemos o Evangelho, a Palavra de Deus e a salvação por meio de Jesus, passamos a ver todas as coisas de forma inteiramente nova.
Entendemos, por meio do Espírito Santo, o que é o pecado, o juízo, a eternidade. E quando vamos falar dessa boa-nova a outras pessoas, não raro nos olham tratam como loucos. E isso se explica pelo fato de que, como essas pessoas ainda não tiveram seu entendimento aberto, toda a nossa experiência passa por loucura. Paulo, antes um inimigo da fé cristã, se refere a isso quando diz em I Coríntios 2:14 que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”. Daí à perseguição e ao isolamento é só um passo, como no mito platônico. As pessoas não aceitam romper o paradigma de que as sombras não são a realidade. Que a luz da fogueira é nada perto da luz do sol. Que existe uma possibilidade que vai muito além da caverna escura e das correntes.
Mas isto pode ser levado além.
Depois de algum tempo freqüentando templos evangélicos, muitos percebem que o modelo e a estrutura das igrejas da atualidade estão, de fato, se distanciando do padrão que havia no início da era cristã. Somos muitas vezes incentivados a ler o livro de Atos para aprender como era a vida da Igreja, o relacionamento entre os irmãos, e até mesmo o comportamento daqueles que exerciam a liderança. Mas o interessante é que, se começamos a comentar tais assuntos, a própria organização eclesiástica assume o comportamento dos “homens da caverna”: dizem que somos rebeldes, que não nos sujeitamos à autoridade, que não nos relacionamos bem, que estamos “fora da visão” e o resultado, muitas vezes, é o afastamento da instituição.
Surgem aí os chamados “desigrejados”, pessoas que não se conformam com o modelo que aos poucos vai se tornando a ideologia dominante nos círculos evangélicos: a figura de um “superior”, ungido e maravilhoso, cuja palavra é lei e não admite contestação, e sob cuja “cobertura” todos devem se aglomerar, sem o menor questionamento. Uma miríade de novos “apóstolos” (e “apóstolas”), “bispos” (e “bispas”), e até mesmo “patriarcas” se estabelece sobre o rebanho, baseados em “novas revelações” e modelos de crescimento numérico importados da Coréia, da Colômbia e sei lá daonde mais, numa estrutura piramidal que não permite senões.
Esse mundo se parece mais com o universo retratado no filme “Matrix” (que afinal de contas, faz muitas referências ao mito da caverna). Acho que foi isso que aconteceu com o Kaká, e vem acontecendo com muitos outros cristãos, cansados da ditadura dos púlpitos.
Eles ousaram olhar além da “Matrix”.

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