Agora já existe no calendário um tal “Dia do Evangélico”. Eu acho isso a maior besteira. Não precisamos – nem como brasileiros, nem como evangélicos – de mais um feriado. O pior de tudo é que a bancada que se diz evangélica – aqueles mesmos que aparecem de tempos em tempos prometendo mundos e fundos nas igrejas por aí afora – nem mesmo se deram ao trabalho de pesquisar qual deveria, de fato ser um dia dedicado ao cristão protestante, se tal coisa fosse importante. Se realmente fosse necessário existir esse dia, deveria ser o 31 de outubro. Não admito que me perguntem por que essa data e não 30 de fevereiro ou 31 de junho. Mas já que ninguém perguntou, vou dizer assim mesmo, pois tem gente que não sabe (os tais deputados, por exemplo): foi o dia em que Martinho Lutero pregou, na porta da catedral da cidade alemã de Wittenberg, em 1517, suas famosas 95 Teses, ou tópicos em que defendia que o papa não era assim essa sumidade toda não; pelo contrário, estavam sendo cometidos diversos erros doutrinários em relação à Bíblia, a única fonte de inspiração e regra para o cristão de todos os tempos.
Assim, pensei em publicar uma série de artiguinhos sobre os primórdios da Reforma Protestante. Muita gente sabe, mas é sempre bom relembrar, ainda mais nesses tempos bicudos por que passamos, onde certas congregações recorrem a práticas que deviam ser abolidas (na verdade foram, mas os neo-cristãos as ressuscitaram com as mais variadas desculpas, e ainda inventaram outras novas). Rosa ungida, sabonete ungido, vassoura ungida, vale do sal, jogar pedra no gigante, orar de dentro da baleia, unção do riso, do leão, da águia e outros bichos, danças e piruetas, falar línguas esquisitas (que é diferente de línguas estranhas), toque no altar, toque do shofar, tremeliques, levitas, culto do cai-cai, reteté, costumes judaicos, e por aí vai.
Vamos tentar fazer um esforço e imaginar como era a percepção bíblica e o viver diário desses homens e mulheres que viveram, lutaram e morreram pelo Evangelho genuíno e sem mistura, sem idolatria a esculturas e nem a líderes humanos. Pessoas que buscaram unicamente na Bíblia a orientação para o viver, desprezando "novas revelações" e buscando unicamente na Bíblia a orientação de Deus para o dia a dia. O anseio pelo retorno à simplicidade bíblica começou bem antes de Lutero. Durante a Idade Média, alguns grupos foram perseguidos por serem considerados hereges, mas na verdade, o que eles queriam era simplesmente um retorno às práticas da Igreja Primitiva, há muito abandonadas pelo catolicismo. Entre esses grupos, um dos mais expressivos foi o dos Valdenses.
O movimento começou por volta de 1170, quando Pedro Valdo, um rico mercador de Lyon, sul da França, contratou alguns eruditos para traduzirem a Bíblia do latim para a língua local. Após estudar com afinco a tradução, Pedro Valdo chegou à conclusão de que os cristãos deveriam viver como os apóstolos, sem riqueza, sem propriedades... apóstolos de verdade, bíblicos... não como uns e outros que pululam hoje nos canais de TV, com anel de ouro, paletó ungido, caminhonete de luxo, jatinho particular, etc. Depois de distribuir seus bens entre os pobres (o que os ricos apóstolos de hoje não fariam nem sob tortura), Valdo reuniu um pequeno grupo que se vestia de maneira simples, andava descalço e levava uma vida de pureza.
O clero não se opôs, a princípio: permitiram-lhes cantar nas igrejas. Mas quando começaram a pregar o Evangelho, foram advertidos de que só o bispo católico poderia ministrar. A essa altura (1179) a Bíblia já era de domínio público, e os valdenses haviam, inclusive, decorado grandes trechos da Palavra; com isso, passaram a desprezar o culto aos santos e imagens, o purgatório e outros ensinos estranhos ao Evangelho. Foram considerados hereges em 1184, e perseguidos juntamente com outros crentes, cujo crime era discordar da orientação papal. Desde então, milhares morreram na fogueira, trucidados por soldados e assassinados por mercenários a serviço de Roma, nas tristemente famosas “cruzadas contra os hereges”.
Vendo que a violência era inútil para acabar com a fé genuína daquele povo, o papa decretou que ninguém mais deveria possuir a Bíblia, exceto alguns trechos de Salmos – mesmo assim, só em latim – para evitar comparações ente a Igreja de Atos e a católica. Foi espalhada a crença, que ainda permanece em alguns lugares, de que quem lê a Bíblia fica louco. E além disso, nos anos que se seguiram à perseguição, foi criada a Inquisição, instituição nefasta e de triste memória, a fim de, através de torturas físicas e psicológicas, intimidar os que não se submetessem aos dogmas da igreja oficial. Esse organismo sádico e mesquinho, ao longo dos séculos, mudou de nome e agora se chama “Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé”; seu mais ilustre dirigente e mentor recente foi um padre alemão chamado Joseph Ratzinger, a.k.a. “sua santidade ex-papa Bento XVI”.
Quanto aos valdenses, apesar de toda a brutalidade de que foram vítimas, e depois de séculos de perseguição atroz, ainda sobrevivem, no sul da França. Lá ainda existe um pequeno remanescente de cerca de 35 mil pessoas desse povo heróico que lançou as sementes da Reforma.
Fonte: Will Durant, História da Civilização, vol. IV, A Idade da Fé, Ed. Record, 2ª ed., p. 687/688; Earle Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos; Ed. Vida Nova, 2ª ed., p. 186.