quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Crente fica endemoninhado?

Renato Vargens conta um caso no mínimo curioso, se não fosse cômico. Em uma igreja neo-pentecostal de Niterói (estado do Rio de Janeiro), num culto de exorcismo, o pastor resolveu expulsar os demônios dos crentes. Fundamentado numa revelação espiritual,  dizia que a “coisa-ruim” costumava se esconder nas mãos dos cristãos, sendo necessário assim, ministrar-lhes “libertação espiritual”.  Se não bastasse, outra “igreja” da mesma cidade, “consciente da batalha espiritual dos últimos dias”, resolveu expulsar o demônio da libertinagem “ungindo” os genitais dos presentes. Eu  já vi e ouvi pessoas dizendo que o demônio se esconde mesmo é no umbigo, mas tem quem vá além. Acham que o Diabo pode possuir as mãos, o umbigo, o bilau e tudo mais, mesmo o sujeito sendo evangélico.
Em alguns círculos, notadamente na linha “apostólica” ou neo-pentecostal, ensina-se que é possível o cristão ser possuído por demônios. Com base em visões de seus “líderes apostólicos”, mesmo que a Bíblia diga o contrário, ensinam que:
“endemoniamento significa ‘ter demônios’...No grego ‘daimonizomai’ ou ‘daimonozomenai’...”. 
Como se vê, buscam algum verniz de erudição, mas misturam tudo com interpretações particulares, como se segue:
“Na antropologia e na sociologia, costuma-se usar a palavra possessão, com o significado de incorporação. A possessão integral do homem, espírito, alma e corpo, só Deus pode possuí-lo. Os demônios atuam mais na alma (mente e emoção) e no corpo físico visando a destruição do espírito humano. As pessoas endemoniadas são irritadas e nervosas, pois eles atuam diretamente no sistema nervoso”...
Veja a tentativa de transformar observações pontuais em regras gerais. Segue o arrazoado, onde uma “visão” de um “profeta/apóstolo” é tomada como doutrina:
“Na visão dada a Rick Joyner ele vê os demônios montados nas costas dos crentes, fazendo-os de cavalo. (Livro “A Batalha Final”). Não vai muito longe essa verdade, que até mesmo a expressão usada pelos umbandistas é que ‘fulano é cavalo do guia tal’, ou seja, o guia tal, monta, desce, incorpora, no fulano. E você pode até dizer: Mas isso acontece com quem dá legalidade dentro de um centro espírita, e aqui estamos falando de crentes!!! E te respondo amado(a): Quando damos vazão ao ódio, à inveja, à calúnia, à fofoca, à amargura, ao orgulho, à ambição, à traição, e tantos outros sentimentos e atitudes negativas, que não são enviados por Deus, é como se no reino do espírito abríssemos uma porta e disséssemos ao diabo: - Entra, a casa é toda sua. E ele monta nas nossas costas e faz a festa, essa é a verdade. Não podemos mais usar máscaras! Estamos nos finais dos tempos, a volta do Senhor Jesus é mais do que eminente, e não podemos achar que porque sou crente não estou sujeito a opressões demoníacas” (...)
O “estudo”, muito mal escrito por sinal, termina detalhando os “estágios do endemoninhamento” (sic):
1 - o crente peca – estado normal, mas confessa e perdoado – está insento (sic) de endemoninhamento
2 - o crente repete o pecado – endurece – demônios rondando 
3 - o crente persevera no pecado endurece mais ainda, ele fica oprimido 
4 - o pecado se torna hábito - brecha para o inimigo, um demônio entra
5 - o pecado se torna compulsão – endemoninhado – alguns entram 
6 - o pecado se torna obsessão – endemoninhado – mais outros entram 
7 - muitos demônios o invadem (fonte
Note que fizeram confusão entre possessão e opressão. Mas não sei  se o número de estágios (7) é coincidência ou se é intencional. Fico com a segunda hipótese, pela tendência desse pessoal a adotar o que eu chamo de numerologia evangélica. Clique para entender mais. Também não sei a diferença entre “alguns entram”, “mais outros entram”, e “muitos invadem”. Acho que é só para alcançar o número mágico. “Amado”...
Há ainda quem diga que o crente “não pode ser possesso por demônio enquanto anda na luz onde o Senhor na luz está (grifo meu). Baixando a guarda e se afastando das coisas de Deus, o Diabo vai conseguir produzir alguma ingerência sobre tal crente descuidado e conformado com o mundo caído, buscando fazer dele um tropeço enquanto continua buscando afastá-lo completamente do ‘arraial’ de Deus, quando poderá devorá-lo. Fora do ‘arraial’ de Deus, a situação de tal crente poderá se tornar à semelhança da situação de Saul, quando se afastou de tal maneira de Deus que o Espírito Santo o deixou e a ‘casa’ ficou vazia e à mercê de salteadores que buscam um covil para se esconderem”. (fonte)
Mas o fato é que, do ponto de vista bíblico, é impossível alguém regenerado pelo Espírito Santo e salvo pela graça de Deus em Cristo Jesus ter em seu corpo a manifestação de um demônio, porque as Escrituras afirmam que se somos de Cristo, o Maligno não nos toca (I João 5:18) . Isto significa que se alguém que se “diz cristão” estiver endemoninhado, com certeza nunca conheceu a graça do Senhor, porque caso tivesse conhecido, Satanás jamais o possuiria.
É óbvio que falamos aqui de cristãos autênticos, os quais entenderam a mensagem do Evangelho, foram regenerados pelo novo nascimento, arrependidos de seus pecados e vivendo em novidade de vida. Sobre esses a Bíblia ensina que:
- são propriedade exclusiva de Deus (I Pedro 2:9). Se é exclusiva, só Deus tem direito de usufruto desta propriedade. Só Deus tem o direito sobre a vida do verdadeiro crente.
- são selados com o Santo Espírito da promessa (Efésios 1:13). Já falamos sobre este selo aqui. É importante repetir que um selo é algo que não pode ser violado. Os reis, magistrados e outras autoridades faziam uso dele quando o conteúdo de uma carta ou documento precisava ser preservado, e ai de quem “quebrasse” ou “violasse” o selo. O Selo de Deus tem ainda mais valor e poder: ele é o próprio Espírito Santo; o que se dirá então do Selo de Deus? Quando nossos inimigos espirituais tentam investir contra o verdadeiro crente, eles logo vêem o Selo de Deus, e tremem. O Selo Real impresso na alma do verdadeiro cristão de forma alguma pode ser violado. Como expliquei antes, não há como o crente ser “selado” e depois “des-selado”. O cristão genuíno é marcado com o próprio Espírito de Deus. E é por isso que...
- o Maligno não lhes toca (I João 5:18). Se o próprio Deus guarda o verdadeiro cristão, e o próprio Espírito Santo é o selo de que ele pertence a Deus, como o Diabo poderia possuí-lo? Alguns chegam a dizer que “o Diabo tocou em Jó”;  mas a verdade bíblica é que o Diabo não pôde tocar em Jó ou em suas posses senão sob a permissão de Deus, pois o Senhor protegia Jó com uma “cerca” (Jó 1:10). E não se pode afirmar que Jó ficou endemoninhado ou possesso. A atuação de Satanás foi totalmente externa. Satanás entendia que não tem livre acesso a quem está “cercado” por Deus.
- são Santuários de Deus, onde Deus habita (I Coríntios 3:16-17; 6:19). Se Deus está habitando a casa, então não há lugar para o Diabo e seus demônios.
- têm dentro de si Aquele que é maior do que o Diabo (I João 4:4). Como pode o mais fraco (Satanás) subjugar o mais forte (Deus)?Jesus conta que para um valente venha a tomar uma casa, ele tem que ser mais valente do que o que já está na casa (Lucas 11:21-22).  Maior é o que está dentro do verdadeiro crente do que o que está fora dele. Como o Diabo e os demônios poderão saquear a casa onde Deus está? O verdadeiro crente não pode ser possesso porque o Espírito de Deus habita dentro dele. O Diabo não pode entrar, porque Deus está dentro.
- têm autoridade e poder sobre os demônios (Lucas 10:17-19; Marcos 16:17-18). Como pode alguém ser possuído por outro, sobre o qual tem autoridade e poder? Ao verdadeiro crente foi concedido poder e autoridade sobre o Diabo e os demônios. Os agentes do mal não podem tomar a vida do verdadeiro crente, e além disso são repreendidos e expulsos.
Os que advogam a tese do crente endemoninhado se apóiam no caso de Saul (em I Samuel) e da “casa vazia” (Mateus 12:43-45). A Bíblia relata que “o Espírito Santo se apoderou de Saul” (I Samuel 11:6), e depois que “o Espírito do Senhor retirou-se de Saul, e o atormentava um espírito maligno da parte do Senhor” (I Samuel 16:14). Vemos que no Antigo Testamento Deus agia de forma diferente da de hoje. O Espírito Santo não havia ainda sido derramado, não havia ainda sido enviado (João 14:26 e 20:22). Ele agia de forma pontual e assim como Saul muitos outros foram usados pelo Espírito de Deus: Josué (Números 27:18), Gideão (Juízes 6:34), Jefté (11:20), Sansão (14:6), Azarias (II Crônicas 15:1), Zacarias (24:20), etc.; até Balaão (Números 24:2).
Mas como acontecera com Sansão anteriormente (Juízes 16:20), “o Senhor se havia retirado dele” (I Samuel 18:12); e foi permitido, como no caso de Jó, que um espírito maligno o atormentasse. Não se pode afirmar que Sansão ou Saul ficaram endemoninhados. No máximo, creio que ficaram perturbados, oprimidos, e eventualmente começaram a fazer besteiras, influenciados pelo demônio, posto que já não tinham o Espírito. Note que até mesmo Pedro deu lugar a uma sugestão de Satanás, ao que foi repreendido por Jesus (Mateus 16:23). O que prova que o Inimigo, de fato, anda em derredor (I Pedro 5:8) soprando bobagens a todo instante. Cabe a nós não lhe dar ouvidos, para não sermos influenciados por ele.
A “casa vazia”, para mim, refere-se àquela pessoa que possa ter sido exposta ao Evangelho. Ouviu a pregação, soube da boa-nova, mas como Félix (Atos 24:25) e os atenienses (Atos 17:32), preferiu deixar a decisão de seguir a Cristo para outra ocasião. Talvez até mesmo foram libertos de demônios. Mas a demora em “abrir a porta” (Apocalipse 3:20) deu ocasião ao Diabo para que voltasse. Mais uma vez, não se trata de perder a salvação, porque não chegaram a experimentar a salvação! O texto é claro, mas é importante notar que, como tentei explicar acima, o verdadeiro crente não é uma “casa vazia”. Ele é o local onde habita o Espírito Santo de Deus. E se a casa está vazia é porque o Espírito Santo não habita ali, donde se conclui que a pessoa não é convertida.  
Não interessa se tem 30 anos de bacharel em teologia: se a pessoa lê a Bíblia e não entende, é sinal claro de que não tem o Espírito Santo. Nada sabe da salvação, da Trindade, do Diabo, do Evangelho. Por isso ficam por aí escrevendo bobagem, confundindo tudo, cheirando Bíblia... ocupam púlpitos e tomam nosso tempo para fazer a vontade do Diabo.
Penso que as duas situações são excludentes – crente não fica endemoninhado, e endemoninhado não é crente. Por isso o salvo não fica possesso e o possesso não é salvo - pelo menos enquanto permanecer posseso. Primeiro precisa ser liberto para depois ouvir e entender o Evangelho! Tampouco o possesso  é um “crente que perdeu a salvação", porque a salvação não se perde. O crente pode, no máximo, ser oprimido e/ou perturbado, mas é ação externa do Diabo. Obviamente, mais uma vez, estamos falando de crentes convertidos, não de frequentadores de igrejas.   “Membro de igreja”, é outra coisa. Por isso não fico surpreso com certas atitudes de “bacharéis em teologia”, “levitas”, “bispos”, “apóstolos” e que tais. Não só se mostram incrédulos, não-regenerados, como podem muito possivelmente estar sob influência de demônios, se não possuídos, agora mesmo. Doa a quem doer.
E no fim das contas - doa a quem doer, de novo - acho que quem ensina que crente fica endemoninhado e pode perder a salvação, no fundo quer é manter o povo com medo, e assim fica mais fácil manipular a massa...

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