quinta-feira, 14 de novembro de 2019

No tempo de Constantino


Imagine – apenas imagine, por uns instantes – que você vive nos tempos do imperador Constantino, em algum lugar do Império Romano, lá pelo ano 330 depois de Cristo.
Feche os olhos e tente imaginar.
Como boa parte da população dessa época, você agora professa a religião cristã. Como muitos, você antes acreditava nos deuses antigos e ídolos de pedra e barro. Em algum momento, você ouviu a mensagem do evangelho, pregada por algum cristão, e creu naquela palavra, porque ela vinha carregada de esperança; era uma mensagem que lhe prometia uma vida nova, um novo relacionamento com um Deus vivo, amoroso e misericordioso. Você teria ouvido da vida de Cristo, que vivera três séculos atrás, que nasceu na pobreza, andou em humildade e simplicidade. Ele pregava a inclusão de todas as pessoas no Reino de Deus, mediante somente a fé. Havia lugar para todos. Um homem diferente, que morrera pelos que chamava “minhas ovelhas”, “esses pequeninos”, a quem prometera alívio do fardo pesado do pecado e uma vida plena de paz, sob os cuidados de um Deus que olhava por todos. Um homem que em nenhum momento se vendeu aos poderosos, que não fez nenhum tipo de acordo para ser o maioral ou líder da nação. Um homem que venceu o ódio, mesmo sofrendo a violência. Um homem que pregava o perdão e o amor ao próximo.
Você acreditou nessa mensagem e quis entrar para a família de Deus. Você entendeu que vivia no pecado e só Jesus poderia salvar de um destino terrível, nas trevas. Agora você vive na luz, e serve a Deus, segue a Cristo com alegria e participa da vida da Igreja. Você agora procura obedecer aos mandamentos de Cristo, de amar o próximo e fazer o bem, porque Ele deu o exemplo.
Você sentiu apreensão e até medo tempos atrás, porque quem queria ser cristão de verdade sofria perseguições, gozações, não tinha oportunidade de trabalho. Sofria com estigmas e falsas acusações de querer ser santo, querer ser diferente, de só falar de Deus, de só cantar músicas da igreja. Cristãos não, são muito chatos.
Mas agora está diferente.
O imperador confessou ser cristão! Correram as notícias de que ele até foi batizado! Ele ajuda as igrejas! Deve ter sido coisa de Deus! Deus finalmente ouviu nossas orações e colocou dirigentes cristãos na chefia da nação! Oh glória! Aleluia!
Você agora viu que os cristãos que antigamente eram uma minoria, agora são a maior parte da população. Você acha isto muito bom! Agora você pode comemorar as festas cristãs sem medo. Mesmo que nos evangelhos não se costumava comemorar Natal, nem Dia dos Reis, nem fazer nenhuma homenagem aos “heróis da fé”. Isso era coisa dos pagãos, que tinham aquelas coisas de “dia do sol”, “dia de Saturno”, dias de jejuns e procissões. Tudo isso era do antigo paganismo. A nova vida que Cristo prometera não tinha nada disto. A igreja que Cristo disse que edificaria teria um objetivo espiritual, e não mundano.
E a igreja agora tem o imperador a seu lado!
Até que você resolve olhar mais de perto.
Você descobre que o líder máximo tem um passado sombrio. Esse assunto não era falado, porque não havia certeza de nada. Notícias não circulavam fáceis assim, ainda mais sobre assunto tão delicado. Havia rumores de que ele havia se associado a pessoas de péssima reputação, durante sua carreira militar. Alguns de seus antigos companheiros de armas não eram boas pessoas. E quando se esperava que ele, como cristão, evitasse tais companhias, não, ele continua tendo essas pessoas como seus principais camaradas e conselheiros.
Você agora sabe que o mandatário teve várias esposas. Isso vai de encontro ao que os pregadores ensinavam. Você também se surpreende ao ver que ele demonstra professar outras religiões, em várias ocasiões. Apesar de ter sido batizado na religião cristã...
Os filhos do imperador demonstram ser pessoas terríveis, que brigam com todo mundo e entre si. Você se pergunta o que acontecerá nos próximos tempos se o imperador falecer.
Você olha ao redor e vê que continua a carestia. Alimentos continuam caros, nada melhorou. Não há trabalho. A maioria das pessoas ainda é escrava. A violência continua, roubos, assaltos, assassinatos, muitas vezes cometidos por aqueles que deveriam dar segurança e paz para todos. Nesse aspecto parece que Deus não está assim tão a favor deste reino.
Mas aí você descobre que mesmo fazendo parte da família de Deus, da igreja cristã, você não pode tocar nesses assuntos. Você deve se calar e aceitar tudo que mandam, porque agora igreja e estado se confundem em uma entidade só. Você achava que ter um imperador cristão iria libertar a igreja de muitos males, mas vê que quando a igreja faz parte do poder secular, ela se torna tão ou mais opressora do que os imperadores não-cristãos jamais foram. Esta igreja apoia até mesmo que os inimigos do estado – reais ou imaginários – sejam caçados, torturados e varridos da face da terra. Esta igreja ignora os ensinos de Cristo.
Você percebe que não pode falar sobre isso, e discordar de algumas ideias desta nova igreja pode ser fatal. Você agora pode receber o rótulo de “herege”, de “apóstata”. Você estará fora da comunhão. Será como os leprosos, ninguém quer nem mesmo conversar. Perderá o contato com todos os demais cristãos, mesmo os de sua própria família carnal. Sua vida será um pesadelo, porque você queria muito poder falar com seus amigos e irmãos na fé, mas não pode porque você ousou pensar um pouco mais e questionar até que ponto é boa essa associação da fé com o poder político. Não há mais diálogo, nem comunhão, porque você sabe que muitas coisas ruins estão entrando na igreja, e você não quer fazer parte disso.
Você se sente só, porque não tem mais para onde ir.
Aí você para de imaginar, abre os olhos, e vê que você não vive mais no império romano sob Constantino, por volta do ano 330 depois de Cristo.
Ainda bem que as coisas estão bem diferentes hoje, não é mesmo?

938750