sábado, 24 de janeiro de 2015

Cristão deve apoiar a pena de morte?

Reproduzo parte de um texto do prof. César Zanim, que retrata exatamente o meu sentimento.
Abro aspas:
Dois brasileiros foram condenados à pena de morte por fuzilamento na Indonésia, por tráfico de drogas. Um deles, Marco Archer Cardoso Moreira, foi executado em 17/01/2015. O governo brasileiro fez dois pedidos de clemência ao governo indonésio, tentando alterar a punição para evitar e pena capital, por questões humanitárias, mas não foi atendido. O outro condenado, Rodrigo Muxfeldt Gularte, também deverá ser fuzilado, em fevereiro de 2015.
A Indonésia tem uma das leis antidrogas mais rígidas do mundo, incluindo a pena de morte para o crime de tráfico. Quem for pego com mais de cinco gramas de droga pode ser condenado à morte, inclusive estrangeiros. E na Indonésia a maioria apoia a pena de morte, mas é pertinente salientar que com o passado recente desse país, sangrento e corrupto, era mesmo de se esperar. Para quem quiser saber mais sobre como o povo indonésio lida com a morte, indico os filmes de Joshua Oppenheimer (como por exemplo, este e este).
A pena de morte para crimes civis foi aplicada pela última vez no Brasil em 1876 e não é utilizada oficialmente desde a proclamação da república. Até então, o júri continuou a condenar pessoas à morte, ainda que Dom Pedro II comutasse todas as sentenças. O jornalista Carlos Marchi, autor do livro “A Fera de Macabu“, sobre a pena de morte por enforcamento aplicada ao fazendeiro carioca Manoel da Motta Coqueiro (que era inocente), observa que a finalidade principal era reprimir e amedrontar os escravos – não à toa a punição foi retirada do Código Penal um ano depois da abolição da escravidão.
O inciso 47 do art. 5º da Constituição diz que “não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada”. Ou seja, a pena de morte no Brasil foi abolida para todos os crimes não-militares. O artigo 60 faz dessa abolição da pena de morte uma cláusula pétrea, ou seja, qualquer mudança no texto dependeria de uma Assembleia Constituinte que elaborasse uma nova Carta, algo bastante improvável.
Segundo uma pesquisa do Datafolha de 2002 a maioria da população brasileira queria a pena de morte no Brasil (45% contra e 51% a favor). Em 2008 essa pesquisa do Datafolha indicava empate técnico (46% – 47%), mas em 2013, 50% dos brasileiros acham que não cabe à Justiça determinar a morte de uma pessoa, mesmo que ela tenha cometido um crime grave. Outros 46% se disseram favoráveis à punição.  Essa tendência de declínio do apoio à pena de morte vinha sendo sentida também em outros países. Segundo um levantamento do Pew Research Center, o número de americanos que reprovam a pena de morte para condenados por homicídio passou de 31% em 2011 para 37%, em 2013, e segundo o Centro de Informações da Pena de Morte dos Estados Unidos, 2014 teve o menor número de execuções dos últimos 20 anos.
Mas aqui, desde junho de 2013, com a descrença nos políticos e decorrente queda nas pesquisas de aprovação da presidente Dilma, passando por todo o período conturbado da Copa do Mundo e culminando na campanha eleitoral de 2014, que escancarou de vez uma situação de conflito de ideias e confronto político numa sociedade cada vez mais dividida e agressiva, tudo pode virar motivo para mais lenha nas fogueiras. O fuzilamento do brasileiro na Indonésia conseguiu unificar esses dois temas: a pena de morte e a chamada guerra às drogas. Prato cheio para uma série de debates nada construtivos.
Na grande mídia o apoio à pena de morte e à guerra às drogas vem tomando espaço nos telejornais e na programação em geral. Nas redes sociais também tem muita gente se manifestando a favor da pena de morte e da guerra às drogas. Figuras públicas publicam coisas como “viva a polícia que mandou mais 4 bandidos para o saco”, e milhares – evangélicos inclusive talvez, principalmente – defendem, incentivam e/ou comemoram “a morte dos bandidos”. “Bandido bom é bandido morto”, repetem.
Quem nunca ouviu algo assim? Tenho visto esse tipo de coisa todos os dias nas redes sociais. Pois então, eu pergunto, o que é um bandido? E o dicionário me responde o que eu já suspeitava: Bandido é alguém mau caráter e de pouca honestidade que vive de atividades ilícitas.
Diversos canais religiosos, como por exemplo Gospel Prime, site do Pr. Marco Feliciano, Gospel Mais, comunhao.com.br, vcsabiacatolico.com.br, portalconservador.com, livreseradicais.com, levitasnews.com.br, entre outros, divulgaram matérias dizendo que a Arábia Saudita decretou a pena de morte para quem for pego com a Bíblia (um boato, como você pode ver aqui).
De fato, no Irã a “apostasia” e o adultério são punidos com a pena de morte. Em 2011 um homem chamado Abdolreza Gharabat foi condenado e executado por enforcamento porque estaria evangelizando jovens no sudoeste do país. Eu não consigo lembrar de qualquer mobilização a respeito aqui no Brasil (a favor ou contra). (Por estes dias se levantou um clamor em favor de cristãos no Níger, mas eles foram atacados em represália às palhaçadas do Charlie Hebdo e suas trágicas consequências – isto é outro assunto.)
Mas em todo caso, se você for um cristão brasileiro e for pego com a Bíblia em algum país islâmico, você também será um bandido e poderá ser condenado à pena de morte. Poderá ser dito que nesse caso é a lei desses lugares que é estúpida, pois usa a pena de morte de forma equivocada. Acontece que para a maioria dos indonésios, sauditas e iranianos, a lei deles é justa. Será que se fosse um brasileiro condenado à pena de morte por carregar a Bíblia na Arábia Saudita ou por adultério no Irã, haveria todo esse apoio à pena de morte e essa comemoração à morte do “bandido” em questão?  O crime é outro, não se trata de algo “grave” como tráfico de drogas, mas sob a ótica da legislação local, é um crime; afinal a lei do país é aquela.
Quem defende a pena de morte costuma argumentar usando o medo que se sente de um dia passar por uma situação nas mãos de um bandido, de um dia perder alguém querido assassinado, e que acha que todo mundo compartilha. Por isso tantas frases do tipo “eu queria ver você ser contra a pena de morte e defender bandido na mira de uma arma sendo assaltado”.
Quem defende a pena de morte afirma que se trata de uma medida para impedir crimes. Não impede, isso está comprovado. E nem me refiro ao assassinato do bandido perpetrado pelo Estado, como se vê nas tristemente comuns chacinas e massacres em rebeliões em prisões, ao que muitos cristãos comemoram, dizendo “bem feito”.  Nos países onde há a pena de morte os crimes continuam a ocorrer e em muitos deles inclusive aumenta, basta ver as estatísticas.
Um estudo publicado pelo Jornal de Lei Criminal e Criminologia da Universidade de Northwestern, em Chicago, mapeou as opiniões de 67 pesquisadores americanos que se especializaram nesse tema. Para 88,2% deles, executar detentos não tem qualquer impacto nos níveis de criminalidade. Segundo Joe Domanick, diretor do Centro de Mídia, Crime e Justiça da Universidade da Cidade de Nova York, “as pessoas que cometem os crimes mais violentos, que em geral são crimes de paixão ou acertos entre gangues, claramente não se preocupam com a pena de morte ao cometê-los”. Nos 36 estados americanos que adotam a pena, o índice de assassinatos por 100 mil habitantes é maior que o registrado nos outros 14 estados que não a aplicam. Na França, especialistas em segurança pública garantem que a violência não explodiu depois que a guilhotina foi aposentada em 1977. No Irã, o exemplo inverso: a pena de morte foi reintroduzida em 1979 com a revolução islâmica, mas não significou redução das taxas de criminalidade.
Fecho aspas e escrevo eu agora:
Diante de tudo isso, e em especialmente depois de ver a reação de setores e indivíduos ditos “cristãos”, de regozijo pela execução do traficante brasileiro em um país islâmico, de história conturbada por corrupções de todo tipo, onde se aplica uma lei que é prejudicial aos cristãos que um dia forem chamados por Deus para evangelizar lá (ainda existe isso na Igreja brasileira, chamado missionário para países fora da Europa ou América do Norte?), fiquei muito triste.
Eu gosto sempre de pegar o exemplo dos primeiros cristãos, que foram considerados, grosso modo, criminosos. A partir de certa época, passaram a ser tidos como párias na sociedade a passaram a se reunir às escondidas. Não pensem os senhores que Roma era um paraíso e só os cristãos eram “caçados pela polícia”; não. Eram apenas “mais um tipo de bandido”. E eram condenados à morte, porque seu crime era dos mais abomináveis, traição à pátria, à religião (aos deuses antigos) e ao imperador.
Para se ter uma idéia, o historiador Tácito escreveu que os cristãos eram, para os romanos, “o que há de abominável e infame no mundo... uns foram revestidos de peles de animais ferozes e jogados aos cães pra serem devorados; outros eram pregados em cruzes; muitos foram queimados vivos, embebidos de matéria inflamável, acesos para servirem de tochas à noite” (Anais da Historia Romana, XV:44). Será que esses cristãos eram favoráveis à pena de morte, à sua própria morte? Aceitavam a pena, porque sabiam que algo muito melhor os esperava do outro lado, mas será que apoiariam a morte de “outros criminosos”?
Por exemplo, imaginemos um ladrão que tentasse assaltar o palácio do imperador e fosse pego. Imaginemos que fosse anunciado  a toda a população que aquele sujeito seria condenado à morte. Os cristãos apoiariam? Talvez não se manifestassem porque seriam pegos e por seu próprio “crime de traição” possivelmente teriam o mesmo destino, mas no íntimo, qual seria o sentimento dos nossos primeiros irmãos na fé? Seriam a favor do “olho por olho”, “aqui se faz aqui se paga”, ou seriam misericordiosos como Seu Senhor também fora, quando caminhava sobre a Terra?
Vibrariam intimamente de alegria ao ver o nosso ladrão nas chamas de uma fogueira, pendurado numa estaca e com as pernas arrancadas pelos leões no Coliseu? Ou chorariam arrependidos por não terem um dia compartilhado as boas novas da salvação com aquela alma irremediavelmente perdida?
Jesus foi condenado à morte. Mas “não abriu a sua boca” (Isaías 53:7). Não criticou a lei, não fez campanha para mudar o legislativo ou a constituição, nem tampouco condenou o ladrão pendurado ao seu lado, sabidamente culpado de todos os crimes, diferentemente de Si. O próprio bandido admitiu sua culpa e a justiça de sua condenação: “nós, na verdade, [fomos condenados]com justiça; porque recebemos o que os nossos feitos merecem; mas este nenhum mal fez” (Lucas 23:41). Jesus o perdoou e nada disse a respeito da justiça ou injustiça das leis dos homens. Na verdade, Ele já havia dito antes que “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21), com isso dizendo também que não devemos misturar as coisas terrenas com as celestiais, as leis terrenas com lá do alto. Ele disse que se deveria praticar “a justiça, a misericórdia e a fé” (Mateus 23:23), no mesmo versículo que alguns usam para justificar o dízimo. Muitos desses “dizimistas” pularam de alegria ao saber do fuzilamento lá do outro lado do mundo. Praticam o dízimo, mas omitem a misericórdia! Fariseus! Raça de víboras!
O mundo jaz no maligno (I João 5:19), e com isso, todas as realizações humanas – as artes, as ciências, os sistemas políticos, econômicos, judiciários – estão apodrecidas. As leis humanas nunca serão justas. Sempre veremos injustiças, e sempre haveremos de discordar disso ou daquilo. A lei brasileira é falha, e também a da Indonésia, dos Estados Unidos e da França, por mais que se tente vender o contrário – que lá fora é que é bom, mesmo na Indonésia e no Gabão, só aqui é que é tudo uma porcaria. A verdade é que TUDO é uma porcaria!
Mas a lei do Senhor é perfeita (Salmo 19:7). E ela nos ensina a ser misericordiosos, e não rancorosos. A desejar o bem, e não o mal. Isto é coisa do velho homem: “éramos por natureza filhos da ira, como também os demais” (Efésios 2:3). Não temos que nos alegrar com a morte de um pecador, por mais mal que ele possa nos causar, ter causado ou vier a causar; mas sim lembrar que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (I Timóteo 2:4).


César Zanin é tradutor, professor, escritor e produtor. Seu texto original, que reproduzi em parte aqui, pode ser lido na íntegra neste endereço: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/01/pena-de-morte-e-guerra-drogas.html

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