Um trecho bastante curioso da Bíblia,
que suscita uma discussão bem interessante, é Apocalipse 2:6, 15. Aqui temos
notícia de que Jesus odeia os “nicolaítas” que havia em Éfeso; mas o Senhor elogia aquela igreja, que
também odiava esses tais “nicolaítas”. E na Igreja de Pérgamo somos informados de
que ali estava alojado esse mesmo pessoal, e Jesus os odiava igualmente, um dos
motivos pelos quais Ele repreende aquela igreja.
Assim, também deveríamos nos precaver desses
“nicolaítas”. Mas afinal de contas, quem são? Será que é uma advertência para
aqueles dias somente, quando Deus instruiu João a escrever para aquelas
igrejas, ou o fenômeno se perpetuou e ainda podemos identificá-lo em nosso
meio?
Para começo de
conversa precisamos
acabar com bobagens. Já ouvi gente séria dizer que nicolaíta é aquele tipo de
crente que comemora o Natal com Papai Noel, pois essa figura era,
originariamente, um “santo” católico chamado “Nicolau”, ou “são Nicolau”, tanto
é que nos países de língua inglesa é conhecido como “Santa Klaus”...
dificilmente haverá besteira maior do que essa. Até concordo que “Papai Noel”
não tem nada a ver com o nascimento de Jesus, mas daí a chamar o pessoal de
nicolaíta por causa disso já é demais.
Outros associam a palavra “nicolaíta” aos seguidores de
“um certo Nicolau”, um misterioso herege dos primeiros tempos da Igreja. Tomam como ponto
de partida o Nicolau citado em Atos 6:5 como sendo escolhido para servir como diácono. Uma vez que a Bíblia não nos dá mais detalhes, entra em cena a
imaginação e criam-se as lendas.
Diz uma delas, divulgada por Epifânio de Salamis, que
Nicolau começou a pregar heresias, fundou uma seita, e gradualmente afundou na
mais grotesca impureza, com idéias gnósticas e libertinas. A lenda diz que
ele tinha uma bela esposa, mas se absteve de relações sexuais acreditando ser a
vontade de Deus. Mas depois, não controlando o desejo, envergonhado da
sua derrota e suspeitando ter sido descoberto, dizia que “não terá a vida eterna aquele que não copular todos os dias” -
Epifânio, Panarion (Haer., 25:1). Tenho para mim que essa bobajada
toda foi inventada para justificar o celibato dos sacerdotes, idéia que
persiste no catolicismo atual.
Tanto é que Jerônimo e outros escritores do século IV acreditam
piamente nesse relato, pelo menos em parte. Mas ele é irreconciliável com a visão
tradicional dada a Nicolau por Clemente de Alex andria
(150-215), autor mais antigo e criterioso que Epifânio. Ele diz que Nicolau
levou vida casta e criou seus filhos na pureza. Mas numa certa ocasião,
repreendido pelos apóstolos por ser um marido ciumento, respondeu oferecendo
sua mulher como candidata a esposa de qualquer outro; e repetia um ditado
atribuído ao evangelista Mateus: “É
o nosso dever lutar contra a carne e abusar dela”. Suas palavras foram
perversamente interpretadas pelos “nicolaítas” como apoio às suas práticas
imorais. Teodoreto repete o argumento de Clemente e acusa os “nicolaítas”
de falsidade ao usar o nome do diácono. Louis-Sébastien Le Nain de
Tillemont (teólogo francês do século XVII) conclui que, se o diácono
Nicolau não foi o verdadeiro fundador dessa suposta seita, faltou-lhe sorte, pois deu motivo para fundação de uma heresia. Já August Neander
(teólogo alemão do século XIX) argumenta que o fundador foi outro Nicolau. (fonte)
Tem mais: Vitorino de Pettau diz que eles comiam oferendas dos
ídolos. O “venerável” Beda,
notório inventor de moda e mal informado sobre
o que disse Clemente de Alexandria (acima), afirmou que Nicolau permitia
que muitos homens possuíssem sua esposa.
Tomás de Aquino era da opinião
que Nicolau incentivava a poligamia ou o hábito de ter esposas em comum, e
por fim, a interpretação católica virou tudo ao contrário e agora diz que “nicolaíta”
é aquele que defende o casamento do clero. Não falei que isso tudo pretendia
justificar o celibato?
Eu tendo a concordar com Cyrus Scofield. Em seu livro “Notas sobre a Bíblia”,
seguindo o pensamento dispensacionalista, sugere que as cartas de Apocalipse
prenunciam as várias eras da história Cristã e que o termo “nicolaíta” “refere-se à primeira forma da noção de ordem
clerical, ou 'clero', que depois dividiu igualmente a irmandade entre
'padres' e 'leigos'”.
De fato, é difícil discordar do fato histórico de que na época de
Constantino já havia uma visível hierarquia que desvirtuou os ofícios –
bíblicos – de bispos, diáconos, presbíteros e apóstolos, que passaram da
categoria de dons ou capacitações para exercer determinadas funções na Igreja
para títulos nobiliárquicos, em muitos casos. Foi isso que proporcionou, logo,
a criação de um cargo que ficasse acima de todos, uma espécie de
“gerente-geral” da organização, ou seja, o “papa”.
O poder crescente despertou nos líderes
das igrejas o desejo carnal de domínio, soberba e torpe ganância de posição e
riquezas. Especialmente entre os pastores das grandes igrejas, nos grandes
centros, com congregações numerosas, tornou-se uma tentação ostentar o poder
sobre o rebanho e outros pastores de rebanhos menores – exatamente como no
protestantismo de hoje! Foi assim que se criou o “centro da igreja” e o “trono
do papa” em Roma. Como
capital e maior centro urbano de sua época, seus pastores criaram uma imagem de
mais poderosos e importantes que os demais. É claro que, com o apoio de Constantino
(no começo do séc. IV), o bispo de Roma conquistou a supremacia. Não fosse o “nicolaísmo”,
não existiria o erro de uma igreja universal, com sede em algum
lugar! Nem mesmo a primeira Igreja, formada por Jesus pessoalmente, em
Jerusalém, tinha autoridade sobre as demais! Veja em Atos 15 os apóstolos Pedro e Tiago (que estavam em Jerusalém e não
em Roma): não pretenderam dominar a Igreja, mas serviram como conselheiros
junto a ela sob a orientação do Espírito Santo.
Portanto, temos que já no fim da era apostólica (início do século II) surgem os falsos
mestres sobre os quais Jesus, Paulo, Pedro e João já haviam alertado. Começa
uma deturpação das doutrinas originais, e se podemos chamá-la assim, a “doutrina
nicolaíta” está na origem de uma casta especial e superior na Igreja, o chamado
“clero”. Indo além, formou-se uma hierarquia eclesiástica dentro deste mesmo
clero. Há uma grande probabilidade, lógica e historicamente, de que esses
nicolaítas, dos quais (afinal) muito pouco se sabe, sejam os formadores do
pensamento católico romano e, portanto, seus antecessores. Eles já estavam, no
final do século I, infiltrados nas igrejas de Cristo, como podemos ver no texto
de Apocalipse. Voltando à interpretação de Scofield, os elogios e reprimendas
do Senhor em Apocalipse 2 e 3 servem para todos os cristãos de maneira direta,
e simbolicamente formam o quadro geral da História da Igreja, a saber:
(1) Éfeso (Apocalipse 2:1-7), havia abandonado o seu primeiro amor
(anos 70 a 170 d.C.); representa a Igreja primitiva pós-apostólica, começando a
esquecer as doutrinas dos apóstolos.
(2) Esmirna (Ap. 2:8-11), perseguida pelos imperadores romanos (anos 170 a 312 d.C.).
(3) Pérgamo (Apocalipse 2:12-17), precisava se arrepender (anos 312 e início da Idade Média); é a igreja clerical ou estatal, apoiada pelo poder político.
(4) Tiatira (Ap. 2:18-29), tinha uma falsa profetisa (igreja medieval), uma mulher é quem dá as cartas...
(5) Sardes (Ap. 3:1-6), representa a era da Reforma, onde “alguns não se contaminaram”. Esta fase, como a de Tiatira, coexiste com a Igreja que será arrebatada (3:3).
(6) Filadélfia (Ap. 3:7-13), a igreja perseverante (v. 8 e 10).
(2) Esmirna (Ap. 2:8-11), perseguida pelos imperadores romanos (anos 170 a 312 d.C.).
(3) Pérgamo (Apocalipse 2:12-17), precisava se arrepender (anos 312 e início da Idade Média); é a igreja clerical ou estatal, apoiada pelo poder político.
(4) Tiatira (Ap. 2:18-29), tinha uma falsa profetisa (igreja medieval), uma mulher é quem dá as cartas...
(5) Sardes (Ap. 3:1-6), representa a era da Reforma, onde “alguns não se contaminaram”. Esta fase, como a de Tiatira, coexiste com a Igreja que será arrebatada (3:3).
(6) Filadélfia (Ap. 3:7-13), a igreja perseverante (v. 8 e 10).
(7) Laodicéia (Ap. 3:14-22), a igreja morna. É a decadência do fim
dos tempos, que vemos hoje: liberal aos costumes mundanos, mais preocupada com bens materiais do que espirituais (fonte).
(Prometo que em outra ocasião entrarei em mais detalhes sobre cada uma delas)
Nicolaitas, não são portanto,
como muitos pensam, “seguidores de Nicolau”, nem do “Papai Noel”, mas quem
defende hierarquia dentro da Igreja. O termo vem da junção de duas palavras gregas que significam “dominar o povo”, e está na origem do sistema
hierárquico católico. E para nossa tristeza, o fermento dessa doutrina herética
está também nas igrejas evangélicas, principalmente depois que, de uns anos
para cá, virou moda usar títulos pomposos. Começou com “bispos”,
depois surgiram “apóstolos”, depois “patriarcas” e agora até “bispo-primaz” já
apareceu no meio evangélico (aqui, aqui,
aqui, etc.).
Há os que defendem, inclusive, o uso de
vestimentas diferenciadas, para distinguir o “clero” dos “leigos”, o “nike” do “laos”.
Diga-me se isto é ou não é um desejo de ser especial, ser diferente, se
distinguir “do povão”. Veja aqui alguns links
que defendem essa papagaiada, usando basicamente os mesmos argumentos
(parece que usaram o velho “copiar/colar”): link
1, link
2, link
3 (existem muitos outros, clones uns dos outros).
Como disse George
Orwell, “todos são iguais; mas uns
são mais iguais do que os outros”. Só essa frase do livro “A revolução dos
bichos” já seria suficiente para condenarmos toda e qualquer tentativa de dominação,
de impor hierarquia e diferenciação no meio do povo de Deus. Mas existe a
máxima do próprio Senhor da Igreja:
“Na cadeira de Moisés
se assentam os escribas e fariseus... Todas as suas obras eles fazem a fim de
serem vistos pelos homens... gostam do primeiro lugar nos banquetes, das
primeiras cadeiras nas sinagogas, das saudações nas praças, e de serem chamados
pelos homens: Rabi [Mestre]. Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi; porque
um só é o vosso Mestre, e todos vós sois irmãos. E a ninguém sobre a terra
chameis vosso pai; porque um só é o vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem
queirais ser chamados guias; porque um só é o vosso Guia, que é o Cristo. Mas o
maior dentre vós há de ser vosso servo. Qualquer, pois, que a si mesmo se
exaltar, será humilhado; e qualquer que a si mesmo se humilhar, será exaltado” (Mateus 23:2-12).
“Então, Jesus,
chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os
maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário,
quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem
quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem,
que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
muitos” (Mateus 20:25-28).
Com o que Paulo
concordou: “Que em
tudo tenha Cristo a primazia” (Colossenses 1:18), “e nós tenhamos nossos irmãos em consideração
como superiores a nós mesmos” (Filipenses 2:3).
Era necessário que houvesse apóstolos,
pastores, mestres, pregadores e evangelistas, mas não como uma cadeia hierárquica
onde um manda no outro. Cada um deles tem autoridade, mas só aquela concedida,
não pelo título que ostenta, mas pela Igreja, de acordo com o que o Espírito
Santo lhe concede pela Palavra. Todo ministro de Deus deve ser respeitado como
líder e condutor espiritual da Igreja e como um irmão que seja um bom exemplo
ao rebanho (Hebreus 13.7 e 17). Mas isto não faz de ninguém o “senhor
do castelo”.
447.340