domingo, 19 de abril de 2009

Entre a Bíblia e a Tradição (1)

Ao longo da História, alguns homens ficaram conhecidos como “Pais da Igreja”, em função da contribuição que deram ao cristianismo. Naqueles tempos, o número de cristãos ainda era relativamente pequeno, e era ameaçado por muitas heresias; sem falar nas perseguições movidas pelos imperadores romanos, havia ataques sutis de filósofos pagãos e existia a necessidade de edificação e exortação do povo de Deus. Os mais conhecidos desses personagens foram Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório, no Ocidente, e Basílio, Gregório Nazianzeno, Atanásio e João Crisóstomo, no Oriente Cristão. Alguns outros, como Tertuliano, Teófilo e Cirilo de Alexandria, Orígenes e o historiador Eusébio de Cesaréia figuram em algumas listas, as quais divergem entre si.

Entretanto, a questão não é conhecer não as obras dos “Pais”, mas sim a relevância desse conhecimento face à Palavra de Deus, que é a Bíblia, tão somente. Temos que considerar que esses homens, embora cristãos sinceros, desejosos de servir a Deus e com conhecimento da Bíblia acima da média em sua época, também sofreram da falta de discernimento comum àqueles dias. Os escritos dos “pais da Igreja”, que os católicos incluem naquilo que chamam “Tradição”, de fato possuem grande valor histórico e literário. Mas sua importância não deveria nem poderia ser superior à da Palavra de Deus. O que acontece no catolicismo é que eles ensinam que a Bíblia é difícil de entender e só os seus sacerdotes podem interpretá-la, à luz da Tradição. E assim tentam adaptar a Palavra de Deus à palavra dos homens, e quando a Tradição entra em conflito com a Bíblia, a Tradição prevalece.
Tentar conciliar duas opiniões conflitantes, a bem da verdade, foi um longo exercício de filosofia cujo processo ficou conhecido na História como “escolasticismo” (em completo desprezo à advertência em Mateus 7:24, de que “não se pode agradar a dois senhores”). Vale lembrar que a metodologia escolástica adotada na Idade Média tendia à filosofia platônica, às vezes aristotélica e até socrática, mas nunca teológica e cristocêntrica. Nessa canoa furada embarcou, como muitos outros, o sistematizador do pensamento católico, Tomás de Aquino. Uma das conseqüências dessa sistematização à la grega foi, no Concílio de Trento (1545/1563), o estabelecimento da Tradição ao mesmo nível da Palavra de Deus. Mas a prova de que a Tradição católica é insuficiente é a sua inconsistência, quando comparada às Escrituras. Uma comparação entre as duas mostra a discrepância entre os ensinos:
 
Proibição de ler a Bíblia:
“Nenhum leigo deve possuir livros das Escrituras, exceto o Saltério e as Horas (Salmos)... também não poderá ler esses livros, a não ser em latim...” – Concílio de Toulouse, 1229.

“Santos” a favor da prostituição e dos bordéis:
“Se se eliminarem os lupanares, a volúpia convulsionaria o mundo.” – “Santo” Agostinho, em De Ordine, 2:4; e “São” Tomás de Aquino, em Summa Theologica, 2:10:14.

A Bíblia diz que só o sangue de Jesus purifica do pecado (I João 1:7), mas a “Tradição” ensina que não:
“Os livros santos, por cuja leitura todos os pecados dos homens são lavados...” – “São” Jerônimo, “Cartas”, pg. 85.

Amar os inimigos? Nem tanto:
“Odeio com veemência os seus inimigos. Oh, se os matásseis com uma espada de dois gumes, para que desaparecessem! O meu desejo era vê-los morrer.” – “Santo” Agostinho, em “Confissões”, Livro 12, 14:17
"Por que (...) a Igreja não deveria usar de força para compelir seus filhos perdidos a retornar?" – idem, em “A Correção dos Donatistas”, 22-24;
“O cristão que mata um incrédulo na guerra santa está certo de sua recompensa; mais certo se for morto. O cristão cobre-se de glória na morte de um pagão porque Cristo é por esse meio glorificado.” – “São” Bernardo Aos Cavaleiros Templários, citado por H. Milman em “História da Cristandade Latina”, 4:251. Isto parece Maomé convocando os muçulmanos à jihad!

Jesus não é co-eterno com o Pai, mas uma criatura:
“Jesus Cristo Nosso Senhor, que Vós gerastes e criastes no princípio de vossos caminhos...” – “Santo” Agostinho, em “Confissões”, Livro 7, 21:27.

Clemente, tido como um dos primeiros “papas infalíveis”, crê em animais fabulosos - mitologia pagã para instruir cristãos:
“Consideremos o sinal prodigioso que ocorre na região oriental, isto é, nas terras próximas da Arábia. Aí existe um pássaro chamado fênix, único na espécie e que vive quinhentos anos. Quando está para morrer, ergue seu próprio sepulcro usando incenso, mirra e outras plantas aromáticas e, ao completar seu tempo, aí se introduz e morre. De sua carne em decomposição nasce uma larva que se alimenta da matéria putrefata do animal morto e cria asas; quando se torna forte, levanta o sepulcro onde se encontram os restos de seu ancestral e carrega-o, voando da terra da Arábia até a cidade do Egito chamada Heliópolis. E, em plena luz do dia, aos olhos de todos, transporta e depõe aqueles restos sobre o altar do sol; a seguir, retoma o vôo de volta. Então os sacerdotes examinam os calendários e percebem que ele chegou ao se completarem quinhentos anos”. (Clemente de Roma, em “1ª Epístola aos Coríntios”, capítulo 25:1-5)
Essa carta, aliás, é repleta de citações duvidosas, do tipo “está escrito em alguma parte” (21:2; 26:2; 42:5; , e “em algum lugar diz a Escritura” (15:2,3,4; 28:2; 35:7; ou “em outra parte” (14:5; 46:3); ou ainda “assim se diz” (29:2,3; 30:4). Por exemplo, em 39:3; 46:2; 48:2; 50:4 acha-se a expressão “Está escrito” sem que se saiba onde está escrito. Isto pretende legitimar ensinos diferentes da Palavra de Deus. E funciona bem, já que “o magistério” não permite a leitura da Bíblia...
No capítulo 10:2 lemos que Abraão “saiu de sua terra, deixou seus parentes e a casa do pai, saindo de uma terra pequenina, parentes sem importância, uma casa modesta”. Contrariamente, a Bíblia diz: “Abrão levou consigo a Sarai, sua mulher, e a Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido, e as almas que lhes acresceram em Harã” (Gênesis 12:3). Abraão era rico, e os parentes eram importantes para ele, tanto que quando Isaque se tornou adulto, Abraão buscou uma nora entre seus familiares: “E disse Abraão ao seu servo, o mais antigo da casa, que tinha o governo sobre tudo o que possuía: Põe a tua mão debaixo da minha coxa, para que eu te faça jurar pelo Senhor, Deus do céu e da terra, que não tomarás para meu filho mulher dentre as filhas dos cananeus, no meio dos quais eu habito; mas que irás à minha terra e à minha parentela, e dali tomarás mulher para meu filho Isaque” (Gênesis 24:2-4).
O capítulo 22 é um discurso atribuído a Jesus; entretanto, também não se encontra na Bíblia. O mesmo acontece em 15:7 e em 20:7 (palavras atribuídas a Deus); em 27:4 (palavras atribuídas a Jó); em 27:6 (palavras atribuídas a Moisés), e diversas outras passagens. É como se fosse um evangelho apócrifo!
Há ainda em 16:10-12 um acréscimo ao trecho de Isaías 53 que fala sobre o sofrimento do Messias, que não se encontra em lugar algum da Bíblia.
Além desses erros, os “pais”, de modo geral, seguiam métodos da filosofia grega, e dela extraíram conceitos e analogias que nivelam a fé cristã ao nível do paganismo, prática que se tornou comum sob o nome de sincretismo. Hoje, a Tradição católica é um corpo gigantesco de interpretações contraditórias e intelectualmente maçantes, compêndios, tratados, atas de concílios, encíclicas, bulas e outros arrazoados filosóficos pseudo-apostólicos, sem falar em milhões de sermões e homilias pretensamente bíblicos, que nada têm a ver com a Palavra de Deus, que é viva e eficaz.

DOA A QUEM DOER.

...continua...