Mas há trechos na Bíblia que só podem ser devidamente entendidos se pudermos decodificar os símbolos, principalmente os de caráter profético; e este é um caminho complicado, pois muitos acabam presas fáceis de alegorias e simbolismos que mais confundem do que explicam.
O método de interpretação alegórica preconiza a máxima espiritualização da Escritura. A maioria dos textos teria uma espécie de “sub-texto”, entrelinhas misteriosas, cheias de simbolismos ocultos e passíveis de interpretações diversas. Assim, as profecias do Velho Testamento sobre um reino terrestre glorioso para Israel são consideradas alegorias da Igreja. “Sião” passa a significar a Igreja ao invés de Jerusalém. Vê-se “o deserto florescerá como a rosa” (Isaías 35) como uma imagem da expansão do Evangelho, ao invés de uma futura condição literal sobre a terra. Ezequiel 40-48 vira uma representação simbólica da Igreja, e não um futuro templo literal. Os acontecimentos em Apocalipse – os julgamentos sobre a terra, as guerras, as duas testemunhas, prisão de Satanás, são vistos simbolicamente, e não como futuros eventos literais. Os alegoristas dizem que os 144.000 não são realmente 144.000, e que o milênio não tem realmente mil anos. Veremos mais adiante que a maioria dos teólogos católicos adota esse método sem pestanejar - o que explica muita coisa, como você verá.
O método alegórico tem suas origens
tanto no pensamento grego (que evitava a interpretação literal dos antigos mitos) quanto na literatura rabínica. Os
estóicos elaboraram uma interpretação alegórica dos deuses, em que buscavam, além
do texto, um significado mais profundo. Eles não usavam a
palavra alegoria, mas, sim, υπόνοια (uponoia, cf. “suspeita”),
uma forma de “comunicação indireta”, que diz algo para dar a entender outra
coisa.

Mas entre os cristãos, não
se interpretava as Escrituras alegoricamente, pelo menos até o fim do século II.
A escola fundada em Alexandria se tornou o quartel-general desse método,
sob a liderança de Panteno e depois Clemente e Orígenes. Alexandria era então o
maior centro de estudos do mundo, local de reunião e estudo dos intelectuais
mais proeminentes, com sua biblioteca de meio milhão de volumes; foi nesse
ambiente de debate filosófico-teológico que Clemente achou em Panteno o mestre
que tanto procurou. Converteu-se ao cristianismo e sucedeu ao mestre em 190, e
misturou a filosofia de Platão com o Cristianismo. Como se sabe, o platonismo
(e depois o neo-platonismo) enfatizava o conhecimento, como os gnósticos, e
assim até mesmo a salvação pessoal dependia mais do conhecimento do que de
Cristo. Clemente simpatizava com esses aspectos místicos e com o método
alegórico, e a Escritura foi submetida a todo tipo de exercício metafísico, da
mesma forma que Fílon fez com o Pentateuco – o que abriu espaço a doutrinas
estranhas, como veremos adiante.
Clemente sentia-se
mais à vontade com a filosofia do que qualquer outro mestre cristão,
considerando-a o modo de Deus preparar os gregos para a vinda de Cristo. Por isso ele procurou
integrá-la à fé cristã. Como os estóicos, ele cria que o verdadeiro cristão
deve cultivar a sabedoria e ficar acima das paixões para se tornar semelhante a
Deus. O verdadeiro conhecimento não está restrito a um único livro; pelo
contrário, a Verdade divina está espalhada pelo mundo: “Há um rio da
Verdade, mas muitos afluentes se encontram com ele, desse ou daquele lado”, escreveu.
Vemos aí uma semente de heresia, uma espécie de proto-panteísmo
ecumênico ou coisa que o valha. E assim ele procurava
interpretar as Escrituras: “Sabendo que o Salvador não ensina nada de uma
maneira meramente humana, não devemos ouvir seus pronunciamentos de forma
carnal; mas com a devida investigação e inteligência, devemos buscar e aprender
o significado oculto deles”. Isso só
pode ser obtido através do esforço e da fé do buscador, mas a essência da
mensagem de Jesus estaria oculta, só compreendida pela interpretação alegórica
ou simbológica. Segundo Eusébio de Cesaréia, Clemente fazia uso com freqüente de
livros apócrifos, e dizia: “Toda verdade é verdade de Deus, venha de onde
vier”. Por aí já se vê no que vai
dar essa mistureba.
A partir de 202, a escola esteve sob Orígenes, que como Clemente e Panteno, acreditava na reencarnação e no karma.
Entre
suas idéias, derivadas do método alegórico, estão: o celibato como
estado santo e superior ao casamento; a vida ascética, contrária ao exemplo dos
apóstolos; tentativa de conciliação da filosofia pagã com o Cristianismo;
regeneração batismal; purgatório; todos os homens e até mesmo Satanás e
demônios, eventualmente, seriam salvos (Cristo, na sua expiação, fez um resgate
de Satanás); o Espírito Santo foi a primeira criatura feita por Deus; Jesus
Cristo não é plenamente Deus. Eusébio atesta na sua História Eclesiástica
6:19 que Orígenes “leu as obras de
Queremon, o estóico, e de Cornuto. Desses aprendeu o método alegórico de
interpretação usual nos mistérios dos gregos, aplicando-os às Escrituras
judaicas”.

Veja, por exemplo, a confusão que ele
arranja com o bom samaritano. O homem assaltado é Adão; Jerusalém é o Paraíso e
Jericó, o mundo. Os ladrões são os demônios, o sacerdote é a Lei e o levita
simboliza os profetas. O samaritano é Cristo, as feridas a desobediência, a
hospedaria é a Igreja, a promessa de retorno do samaritano é a volta de Cristo.
Até aí tudo bem, mas então começa a confusão: ele continua dizendo que o burrinho
é o corpo do Senhor, os dois denários são o Pai e o Filho (que vão cuidar do ferido),
e o hospedeiro é o cabeça da igreja (“o papa”?). Como Jesus pode ser ao mesmo
tempo um dos dois denários, o samaritano e o jumento? É muito mais lógico e
coerente que o hospedeiro seja o Espírito Santo, que vai cuidar do homem até o
samaritano retornar, e nem sei se precisamos procurar significado no jegue. Além
do mais, podemos inferir que os dois denários são o Antigo e o Novo
Testamentos, ou os mandamentos principais (amar a Deus e ao próximo), ou a fé e
as obras... ou então que o levita e o sacerdote são as religiões
institucionalizadas que não fazem caridade... etc... Não é preciso buscar
sentido oculto em tudo.
Tudo isso é legal e bacana como exercício investigativo, mas
obviamente, o principal é o sentido literal – fazer o bem sem distinção de
pessoas e não passar ao largo, como o levita e o sacerdote. Hall (op.cit.)
opina que “embora o sermão de Orígenes
seja muito interessante e homileticamente rico, a dúvida é se essa
interpretação é correta e afinal, satisfatória. Como saber se Jesus pretendeu
que a parábola do samaritano fosse interpretada alegoricamente?... os filósofos
gregos haviam feito assim ao estudar as obras de Homero... Orígenes fez o mesmo
com a Bíblia” (pg. 140/141).
Na verdade, Orígenes nem era tão
bom assim em matéria de interpretação. Apesar de o método alegórico enxergar
mistérios ocultos em textos claros e diretos, na prática Orígenes fez o
contrário: atormentado pelo desejo sexual, levou Mateus 5:28-30 ao pé da letra
e castrou-se. Orígenes foi descrito por Mosheim como “um
composto de contradições: sábio e insensato, perspicaz e estúpido, criterioso e
não criterioso; o inimigo da superstição, e seu protetor; um fervoroso defensor
do Cristianismo, e seu adulterador; enérgico e irresoluto; um a quem a Bíblia
deve muito, e de quem ela tem sofrido muito”.

Para
Agostinho, ao homem não é permitido o
conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido oculto
se pode aproximar da Verdade divina, sem nunca alcançá-la totalmente. Mais tarde, Tomás de
Aquino estabeleceu uma distinção entre a alegoria teológica (que não seria um
artifício retórico mas sim uma visão particular do Universo) e a alegoria secular ou
literária. O uso de alegorias se espalhou por outros campos: tornou-se comum na arte medieval o processo de construção das grandes
catedrais, como a de Chartres, obedecendo a complicados esquemas alegóricos, pois
acreditava-se que tudo deve significar algo mais do que o simplesmente
observável. A literatura desse período também é muito influenciada por esses
conceitos, como “A Divina Comédia”e outros textos da época.
Conceitos que ecoam até na Bíblia de Genebra, onde há
uma nota em Apocalipse 9:11 identificando o “anjo do poço sem fundo” como “anticristo,
o Papa, rei de hipócritas e embaixador de Satanás”. Porém não há razão para se
ver esse anjo senão como um anjo caído literal em um buraco literal, e não um símbolo ou alegoria.
Também o Lion Handbook of the Bible (1983), em sua interpretação de Apocalipse 13, diz que as duas bestas são “o Império Romano e a adoração ao seu imperador”.
E o Illustrated Bible Handbook assume uma abordagem não-comprometida de Apocalipse, apresentando tanto o ponto de vista literal-futurista como o alegórico, mas sem expor as falhas deste último. Dizem seus autores que os 144.000 remidos são “um número perfeito (12 x 12 x 1.000), representando toda a Igreja de todas as épocas”. A morte das duas testemunhas “simboliza toda a Igreja silenciada pela perseguição”. Os 1260 dias (três anos e meio) são “simbólicos” e representam “períodos de aflição” passados por todos os crentes. Os 42 meses em Apocalipse 13:5 “representam a época do evangelho”. A prisão de Satanás (cap. 20) “aconteceu no nascimento de Jesus”! Essas interpretações esdrúxulas são as preferidas por quem quer complicar e não explicar, e assim mostrar que “cada cabeça uma sentença”. Por isso essas interpretações são as que costumam aparecer em programas sobre catástrofes apocalípticas do Discovery Channell e similares.
O falso profeta Harold Camping, recentemente falecido, depois de agendar o arrebatamento para várias datas – e não acertar nem uma – apareceu certa vez com uma interpretação bizarra: as duas testemunhas representam a Igreja; a Igreja tem estado na grande tribulação, mas agora foi morta. Por isso, Deus chegou ao limite da paciência com igrejas e pastores e eles não têm mais autoridade. Obviamente, uma premissa equivocada que leva a conclusões no mínimo questionáveis.
Também o Lion Handbook of the Bible (1983), em sua interpretação de Apocalipse 13, diz que as duas bestas são “o Império Romano e a adoração ao seu imperador”.
E o Illustrated Bible Handbook assume uma abordagem não-comprometida de Apocalipse, apresentando tanto o ponto de vista literal-futurista como o alegórico, mas sem expor as falhas deste último. Dizem seus autores que os 144.000 remidos são “um número perfeito (12 x 12 x 1.000), representando toda a Igreja de todas as épocas”. A morte das duas testemunhas “simboliza toda a Igreja silenciada pela perseguição”. Os 1260 dias (três anos e meio) são “simbólicos” e representam “períodos de aflição” passados por todos os crentes. Os 42 meses em Apocalipse 13:5 “representam a época do evangelho”. A prisão de Satanás (cap. 20) “aconteceu no nascimento de Jesus”! Essas interpretações esdrúxulas são as preferidas por quem quer complicar e não explicar, e assim mostrar que “cada cabeça uma sentença”. Por isso essas interpretações são as que costumam aparecer em programas sobre catástrofes apocalípticas do Discovery Channell e similares.
O falso profeta Harold Camping, recentemente falecido, depois de agendar o arrebatamento para várias datas – e não acertar nem uma – apareceu certa vez com uma interpretação bizarra: as duas testemunhas representam a Igreja; a Igreja tem estado na grande tribulação, mas agora foi morta. Por isso, Deus chegou ao limite da paciência com igrejas e pastores e eles não têm mais autoridade. Obviamente, uma premissa equivocada que leva a conclusões no mínimo questionáveis.
Todos
esses arrazoados místicos
estão no núcleo da teologia católica, e deles bebem muitos evangélicos que adotam o dominionismo, a teologia da prosperidade e outras aberrações. Portanto devemos ficar alertas com esse método, tendo muito cuidado com a forma de interpretar a Bíblia, como veremos a seguir.
(fonte) (fonte) (fonte)
Leituras recomendadas
http://www.academia.edu/1158878/O_Anjo_Melancolico_Ensaio_sobre_o_Conceito_de_Alegoria_de_Walter_Benjamin
http://pt.slideshare.net/diegao45/03-a-interpretao-literal-e-a-alegrica
Leituras recomendadas
http://www.academia.edu/1158878/O_Anjo_Melancolico_Ensaio_sobre_o_Conceito_de_Alegoria_de_Walter_Benjamin
http://pt.slideshare.net/diegao45/03-a-interpretao-literal-e-a-alegrica
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Curiosidades
Os estóicos se reuniam sob os pórticos (“stoa”, em grego) dos templos,
mercados e ginásios, e ensinavam que as emoções destrutivas resultam de erros
de julgamento; e que um sábio, ou pessoa com “perfeição moral e intelectual”,
não sofreria dessas emoções; daí associarmos a palavra “estóico” a uma pessoa
paciente, que não se abala. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo
e governado por um logos divino; a alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao
qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e
de acordo com ele; graças a ele o mundo é um kosmos harmônico.
Fílon de Alexandria também defendia a doutrina estóica do logos, a qual mais tarde infiltrou-se no Cristianismo. Para Fílon, o logos é a própria Lei (Torah), a ação de Deus no mundo, o instrumento da Criação, modelo do mundo e imagem de Deus, a Palavra reveladora e o único meio a partir do qual a alma humana adquire o conhecimento verdadeiro, que vem do conhecimento de Deus. Por isso muitos identificam no início do Evangelho de João algumas semelhanças com o pensamento de Fílon.
Fílon de Alexandria também defendia a doutrina estóica do logos, a qual mais tarde infiltrou-se no Cristianismo. Para Fílon, o logos é a própria Lei (Torah), a ação de Deus no mundo, o instrumento da Criação, modelo do mundo e imagem de Deus, a Palavra reveladora e o único meio a partir do qual a alma humana adquire o conhecimento verdadeiro, que vem do conhecimento de Deus. Por isso muitos identificam no início do Evangelho de João algumas semelhanças com o pensamento de Fílon.
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