quinta-feira, 4 de julho de 2013

Roupa nova para velhas heresias (1)

Montanismo
Um fato intrigante do século XX foi como a Alemanha conseguiu perder a Segunda Guerra Mundial. Depois de ter dominado praticamente toda a Europa e o Norte da África em questão de meses, Adolf Hitler e seus capangas puseram tudo a perder. Pelo menos dois eventos, dentre outros, fizeram a balança pender para os “aliados”: a entrada dos Estados Unidos e a invasão da Rússia.
Considerando a campanha russa, é virtualmente unânime a opinião de que Hitler repetiu um erro histórico. Ele fez a mesma lambança de Napoleão, cento e vinte e nove anos antes.
A invasão francesa, conhecida na Rússia como Guerra Patriótica de 1812, foi o ponto de virada das Guerras Napoleônicas. Reduziu o grande exército francês a uma pequena fração e provocou uma grande mudança na política européia, já que enfraqueceu dramaticamente a hegemonia francesa no continente. A reputação de Napoleão como um gênio militar foi severamente abalada. Embora alguns historiadores afirmem que o exército russo era um dos melhores na Europa e a sua estratégia de defesa tenha sido bem executada, é inegável o papel das grandes dimensões do território russo e dos rigores do inverno na derrota napoleônica.
Meio milhão de soldados invadiu a Rússia em 1812. Inferiorizado numericamente e com unidades  separadas por grandes distâncias, o exército russo recuou. E, em sua retirada, incendiava tudo o que ficava para trás. Quando Napoleão chegou à capital russa, depois de três meses, os moscovitas haviam ateado fogo à cidade e os vencedores ficaram sem provisões. Numa corrida contra o tempo, os franceses tentaram voltar antes do inverno, mas foram dizimados pela fome e pelo frio. Menos de 50 mil conseguiram regressar. Cerca de 38 mil morreram em território lituano, a meio caminho para a França, de modo que até hoje são encontrados uniformes, armas e restos de soldados daquela época.
A história dessa guerra gerou a famosa obra literária “Guerra e Paz”, de Leon Tolstói, que eternizou as batalhas da campanha. A derrota inicial da Rússia e sua vitória final também são lembradas na Sinfonia “1812” de Tchaikhovski.
E Hitler entrou pelo cano igualzinho.
Os alemães criaram a Operação Barbarossa em 1941, para rapidamente tomar a parte européia da União Soviética. Considerada a maior campanha militar da história, cerca de 4,5 milhões de soldados, 600.000 veículos (sendo 3.600 blindados), 4.300 aeronaves e 750.000 cavalos invadiram a União Soviética numa frente de 2.900 km.  Embora não tenham alcançado a conquista total do território, as tropas alemãs tomaram as áreas econômicas mais importantes, concentradas principalmente na Ucrânia. Em novembro de 1941, os alemães já dominavam uma área quatro vezes maior que a Grã-Bretanha. Cercaram Leningrado (atual São Petersburgo) e Moscou estava a apenas algumas semanas de marcha, quando os primeiros flocos de neve começaram a cair sobre a Wehrmacht, despreparada para o rigoroso inverno. Como os russos repetiram a dose (abandonaram as cidades, as casas e os campos, destruindo tudo para que os alemães não aproveitassem nada), os invasores encontraram as despensas vazias e a terra arrasada: tiveram que comer seus próprios cavalos.
Cerca de 250 mil soldados pereceram de fome, doenças e frio abaixo de dez graus negativos. As armas e veículos paravam de funcionar em temperaturas tão baixas. O “General Inverno” outra vez se impunha, como já havia feito com Napoleão. O fracasso da Operação Barbarossa influenciou decisivamente o curso da guerra: daí para a frente, o ditador perdeu a aura de gênio e passou a ser visto como louco, até mesmo pelos colaboradores mais próximos. Foi o começo do fim, como Napoleão.
Vejam vocês como faz falta um pouco de cultura, um item hoje tão raro... Se Hitler tivesse lido “Guerra e Paz”, estudado melhor História ou ouvido Tchaikhovski, talvez hoje estivéssemos fazendo “downloaden” de “dateien” para nosso “notizbuch”, para poder “lesen diesen text”. Não que em outra língua seja melhor ou pior, mas é estranho pensar nessa possibilidade.
E é exatamente este o mal de que padecemos, como Igreja, nesse início de século XXI. Velhas heresias e movimentos se infiltram pelas milhares de portas de igrejinhas e congregações país afora, travestidas de novas roupagens, cantadas por “levitas” modernos e profetizadas por “apóstolos” contemporâneos, no Facebook, no Youtube e no Twitter (ainda bem que o Orkut está na UTI, é menos um vetor de contaminação). Um dos mais notáveis e envolventes perigos em nossos dias é também um dos mais antigos: a heresia frígia, também conhecida por montanismo.
O Montanismo começou com um monge chamado Montano, por volta do ano 155 da era cristã, e se espalhou por comunidades cristãs na Ásia Menor, em Roma e no Norte da África. Por ter se originado na região da Frígia (hoje pertencente à Turquia), Eusébio de Cesaréia, em sua História Eclesiástica, chamava o movimento de “heresia frígia”. Citando outro escritor, Apolinário de Hierápolis, Eusébio diz que Montano afirmava possuir o dom da profecia, enviado para inaugurar a era do Paráclito (o Espírito Santo). Duas mulheres que o acompanhavam, Priscila (ou Prisca) e Maximila, afirmavam que o Espírito Santo falava através delas. Tanto Montano quanto Priscila e Maximila (mas nenhum outro) pretendiam ser a voz de Cristo e do Espírito Santo. Eles falavam, por isto, com “a autoridade do Espírito”, exigindo fé incondicional e absoluta obediência às suas ordens. Durante seus êxtases, anunciavam o fim iminente do mundo, conclamando os cristãos a reunirem-se na cidade de Pepusa, na Frígia, onde a Nova Jerusalém de Apocalipse 21:1-10 desceria do céu.
Um adepto famoso foi Tertuliano (c. 160-220), um dos primeiros “pais da igreja”, autor de inúmeras obras em defesa da Cristandade. Por volta do ano 210, tomou conhecimento do movimento e uniu-se a ele, pois viu ali elementos esquecidos da mensagem cristã primitiva, sobretudo a esperança escatológica. O montanismo era rigoroso, em vista da proximidade do momento final: pregava a castidade mesmo durante o casamento e proibia segundas núpcias. Determinava o jejum durante duas semanas por ano e só se podia comer alimentos secos; carne era proibida. Negava o perdão a pecados graves (mesmo após o batismo com confissão e arrependimento). As mulheres eram obrigadas a usar véu. Recomendava-se aos fiéis que não fugissem às perseguições e que se oferecessem voluntariamente ao martírio. Os montanistas viviam separados, denominando-se como “pneumáticos” (inspirados pelo sopro do Espírito), em oposição aos demais cristãos, considerados racionalistas. Talvez esse tenha sido o seu principal erro, pois na sua ênfase na revelação interior, Montano se dizia a encarnação do Espírito Santo, e chegava a batizar em nome “do Pai, do Filho e de Montano”. Com a pretensão de que nele falava o Paráclito, afirmava estar acima da própria autoridade das Sagradas Escrituras.
Favoreceu ao montanismo o esfriamento espiritual da época (por medo das perseguições ou por se haver enfraquecido a esperança do prometido retorno de Jesus), entorpecendo assim o fervor espiritual, ou seja, a consciência de se terem tornado fracos em relação à vida cristã dos primeiros tempos.
Os traços mais característicos são, antes de tudo, a glossolalia (ênfase nos dons espirituais, especialmente o falar línguas estranhas e o de profetizar) e uma linguagem espiritual tendente ao êxtase e ao entusiasmo. 
O conteúdo de sua profecia era o iminente fim do mundo. As guerras no reinado de Marco Aurélio (vistas no início do filme “Gladiador”, de Ridley Scott) eram interpretadas como sinais premonitórios.
No plano dogmático, entretanto, permaneceram ortodoxos. O movimento foi de restauração, até mesmo reacionário; não se interessava em questões teológicas, e era até certo ponto ingênuo. Apesar de combatido, sobreviveu até ao século VIII, e representou um protesto da Igreja - quando se aumenta a força da instituição, se diminui a dependência do Espírito de Deus.
Conquanto se possam ver nesse episódio algumas boas intenções - a ênfase na dependência do Espírito, dons espirituais, espera da redenção, ética rigorosa – é inegável que em pouco tempo algumas de suas características principais acabam levando ao erro e ao excesso.
Ênfase nos cultos “espirituais” ou “de poder”, onde se não houver pelo menos uma manifestação sobrenatural considera-se que Deus não está presente, pode ser um início de montanismo. Pois a ocorrência de fenômenos incomuns ou sobrenaturais não é garantia de que Deus esteja operando. Lembremo-nos de Elias na caverna: Deus não estava no estrépito do terremoto, nem na barulhenta ventania, nem no fogo, mas numa voz mansa e suave (I Reis cap. 19).
Chamar os outros irmãos, mais ortodoxos, de “geladeiras”, “sorveterianos” e “tradicionais”, na minha opinião, equivale ao orgulho do fariseu: “graças a Deus que não sou como esses aí” (Lucas 18:11, com alguma licença poética). Os montanistas se achavam mais próximos de Deus do que os outros cristãos, pois só eles tinham “o Espírito” e “a revelação profética”. Os outros não eram “avivados”.
Como Montano, alguns auto-denominados “apóstolos”, “bispos” e “patriarcas” da atualidade se acham os únicos autorizados a falar em nome de Deus, e não admitem ser repreendidos. Se até Pedro foi repreendido, “porque era repreensível” (Gálatas 2:11), quem essas semi-divindades de agora pensam que são?
Hoje, muitos afirmam que vivemos um “avivamento”, que a Igreja está “avivada”, com “sapatinhos de fogo”; que experimentamos um “novo tempo”, que acessamos o “novo de Deus” e que “o Brasil é do Senhor”. Mas no fundo sabemos que a Igreja brasileira carece de um verdadeiro avivamento, de santificação, mais evangelização e conversões genuínas; ardor espiritual e anelo sincero pela volta de Jesus. Coisas que não vemos há muito tempo. Desejamos tudo isso, mas não alcançaremos nada com reteté e “caindo no Espírito”. Os incrédulos não serão convencidos do pecado por um monte de gente falando línguas estranhas sem interpretação. Aliás, Paulo já nos alertava sobre isto em I Coríntios 14, especialmente nos vv. 23 e 24.
Tampouco vamos fazer a diferença em nossa geração marcando datas para o arrebatamento e para o fim do mundo, como Priscila e Maximila, Harold Camp, Valnice Milhomens e Neuza Itioka, dentre outros. Precisamos ficar atentos aos sinais dos tempos, mas daí a ver em cada nova tecnologia uma arma do Anticristo é cair em descrédito. Basta sabermos que o cenário está sendo preparado para o advento do Homem do Mal, e que estejamos alertas para não cairmos no sono, como as virgens de Mateus 25:1-13. Todo o mal que o Anticristo causar, atingirá apenas a quem for deixado para trás. E “daquele dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só o Pai” (Mateus 24:36; Marcos 13:32).
Em nossos dias podemos observar que muitos líderes desencorajam o estudo sistemático da Teologia. Já ouvi de pastores um conselho que ficaria bem na boca de algum “papa” medieval, de que não se deve ler tanto a Bíblia. Já ouvi de meia-dúzia de pastores que não se deve estudar Teologia, “para não esfriar na fé”. Ora, então só tem “fé quente” quem não sabe nada da Trindade, não entende Escatologia, não sabe interpretar um texto bíblico corretamente? Quem não conhece a História da Igreja? Para assim poder cometer os mesmos erros uma vez mais? Ou para poder ser mais facilmente manipulado pelo “ungido do Senhor”?
Deus tenha misericórdia de nós, e não permita que, como Hitler, repitamos mesmos os erros do passado.