quinta-feira, 12 de abril de 2012

Contradições da Biblia (1):

Esta é uma das perguntas que mais se ouve por parte daqueles que querem questionar ou desqualificar as Escrituras. Na verdade, trata-se de uma pergunta que já tem uma resposta pronta. Quem a faz já tem na cabeça o que entende ser uma resposta arrasadora, demolidora, definitiva: Não, não merece crédito, porque há nos relatos do Evangelho muitas discrepâncias, muitas narrativas do mesmo fato, que não batem.
Gostam de citar, por exemplo, a cura do(s) cego(s) de Jericó (Mateus 20:29, 30 e seguintes): “Saindo eles de Jericó, seguiu-o uma grande multidão; e eis que dois cegos, sentados junto do caminho, ouvindo que Jesus passava, clamaram, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós”, etc.
Este relato é paralelo ao de Marcos 10: 46 e seguintes: “Depois chegaram a Jericó. E, ao sair ele de Jericó com seus discípulos e uma grande multidão, estava sentado junto do caminho um mendigo cego, Bartimeu filho de Timeu”, etc. Mas os críticos gostam de comparar também com Lucas 18:35 (“Ora, quando ele ia chegando a Jericó, estava um cego sentado junto do caminho, mendigando”).
O argumento que ateus e incrédulos em geral gostam de usar é o seguinte: como pode ser verdade esse relato contraditório? Era um cego ou dois? Jesus e os discípulos estavam chegando ou saindo da cidade?
Para mim isto é procurar chifre em cabeça de cavalo.
Mateus, Marcos, Lucas e João escreveram relatos confiáveis e complementares da vida de Jesus Cristo. Como naturalmente acontece em relatos paralelos mas independentes, há diferenças nos relatos. Mateus foi testemunha ocular do evento. Como um dos discípulos, ele estava no local e relatou o que presenciou. Ele cita dois cegos, mas não menciona seus nomes. Lucas escreveu o evangelho que leva o seu nome cerca de 20 anos após o ocorrido, com base no testemunho dos que haviam visto essas coisas in loco. Como bom jornalista (e melhor do que muitos blogueiros de hoje) ele cita a fonte: “Visto que muitos têm empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, segundo no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra, também a mim, depois de haver investigado tudo cuidadosamente desde o começo, pareceu-me bem, ó excelentíssimo Teófilo, escrever-te uma narração em ordem, para que conheças plenamente a verdade das coisas em que foste instruído” (Lucas 1:1-4, grifo meu).
Assim, Lucas fala de um cego apenas, e como Mateus, também não cita seu nome. Já Marcos, que também escreveu anos depois do fato, menciona apenas um, e especificamente identifica o cego pelo nome Bartimeu. Nota: segundo a tradição e de acordo com Eusébio de Cesaréia, Marcos escreveu conforme Pedro lhe relatou. E Pedro foi, como Mateus, testemunha ocular do episódio.
Esta diferença é uma contradição? É claro que não. Por exemplo, se eu viajar para outra cidade com minha esposa, três pessoas poderiam falar a verdade sobre essa viagem com relatos diferentes, mas não contraditórios. Uma pessoa poderia dizer que “um casal veio aqui”, enquanto outra diria que “uma mulher nos visitou”. Uma outra pessoa poderia até dizer que eu estive lá e citar meu nome. Todas estariam falando a verdade, mas relatando fatos de uma maneira diferente. Assim temos que Jesus curou dois cegos, sendo um deles conhecido pelo nome Bartimeu. E se Pedro, enrolado lá no meio da multidão, viu apenas um cego, o Bartimeu, e contou o fato para Marcos escrever dessa forma, e Mateus, quem sabe em outro ponto, viu dois cegos, mas não achou interessante citar o nome de um deles apenas? Lucas pode ter ouvido outra testemunha que também se lembrava de ter visto apenas um cego.
Passou na TV o documentário sobre João Saldanha, o polêmico e folclórico treinador da seleção de 1970. João Saldanha era um cri-cri, chato de galocha, e de personalidade forte. O programa deu destaque ao fato bastante pitoresco que foi quando o Botafogo venceu o Bangu na final do campeonato carioca de 1967. Surgiram rumores de que o bicheiro Castor de Andrade, dono do Bangu, havia subornado o goleiro botafoguense, Manga, para que “entregasse o jogo”. Saldanha ficou desconfiado quando percebeu que bolas fáceis eram rebatidas pelo goleiro, que parecia nervoso na partida. Eventualmente, o Botafogo, que tinha grandes craques como Gérson, Jairzinho, Roberto e Paulo César “Caju”, que mais tarde seriam tricampeões mundiais no México, ganhou o jogo e ficou com a taça.
Logo após o jogo, num programa de TV, Saldanha disse que Castor de Andrade havia subornado Manga e houve tumulto ao vivo. A imprensa sensacionalista provocou então o goleiro botafoguense, perguntando a ele se ia fazer alguma coisa, ou se ia aceitar calado as acusações.
Estava marcado um jantar na quarta-feira seguinte. Criou-se um clima de animosidade, e espalhou-se que o jogador iria dar uma lição no treinador/comentarista. Saldanha, que não era bobo, foi armado e chegou ao local do jantar mais cedo. Ficou de tocaia e verificou que havia seguranças à espreita. Quando Manga apareceu, Saldanha o surpreendeu, entrando por outra porta, e apontou a arma para ele. Agora é que a coisa fica interessante.
Jairzinho conta que João Saldanha sacou um revólver enorme, a maior arma que ele já tinha visto na vida. Um jornalista presente diz que era um revólver calibre 32, cano curto. Outro jornalista diz que Saldanha atirou para o alto. Saldanha diz que atirou para o lado, para não acertar em ninguém, e para que quando Manga corresse ele acertasse o seu traseiro, para humilhá-lo. Diz ainda que o tiro saiu na direção de seu sobrinho Bebeto de Freitas, hoje também um conhecido personagem do mundo esportivo, mas na época apenas um garoto. Gérson diz que ele atirou para o chão. Um jornalista diz que Manga pulou um muro duas vezes mais alto que ele, mas Saldanha diz que Manga correu para dentro do recinto. O editor de imagens do filme foi muito feliz ao colocar todas essas versões na mesma seqüência, propositalmente.
Pergunto a vocês: alguém duvida que esse episódio de fato aconteceu? Seria invenção de alguém - ou de todos? Há contradições? Há. Quem está certo? Todos estão certos. Jairzinho diz que o revólver era o maior que ele já havia visto, mas outros dizem que a arma era pequena. Depende do ponto de vista. Um diz que o tiro foi para o alto, outro que foi para baixo, outro que foi para o lado. E se foi um tiro para cima, um para baixo e um para o lado? Percebe como o ângulo determina o relato? Em todo caso, o resumo é o seguinte: houve uma confusão envolvendo João Saldanha e o goleiro Manga, tiros foram disparados, mas ninguém morreu. O resto é detalhe, que não desqualifica nem o episódio nem as testemunhas.
Mas tem mais.
Voltemos ao Evangelho.
A segunda explicação para o caso do(s) cego(s é um pouco mais difícil, mas também ajuda a elucidar a propalada "contradição". Onde aconteceu a cura - na chegada ou na saída de Jericó? Mateus e Marcos dizem que Jesus estava saindo de Jericó quando encontrou o(s) cego(s), mas Lucas diz: “Aconteceu que, ao aproximar-se ele de  Jericó...”  (18:35). Para explicar essa aparente contradição, precisamos apenas achar uma explicação plausível dos fatos relatados. Neste caso, há, pelo menos, duas:
(1) Alguns sugerem que o problema vem na tradução aqui da palavra grega usada por Lucas (eggizo). Dizem que esta palavra pode significar o ato de chegar perto de um local, ou pode significar simplesmente estar próximo. Neste caso, se ele acabou de sair de Jericó, estaria próximo.
(2) Uma outra sugestão envolve um fato histórico de existirem na época de Jesus a antiga cidade de Jericó, aquela mesma cujo muros caíram no tempo de Josué, e ao mesmo tempo, uma nova Jericó construída por Herodes, o Grande. Assim, Jesus teria saído da cidade antiga (conforme Mateus e Marcos) enquanto aproximava-se da nova cidade (conforme Lucas).
De modo que o relato dos evangelhos, em especial no caso do(s) cego(s) de Jericó, nada tem de contraditório: os relatos são apenas complementares.
Como na hoje antológica briga de João Saldanha e Manga, naquele dezembro de 1967.

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