domingo, 31 de janeiro de 2010

De pai para filho

Há muitos anos assisti a um filme do diretor francês Regis Wargnier, chamado “Eu Sou o Senhor do Castelo”. É um drama que conta as impressões de um menino a partir da morte de sua mãe e sua solidão na grande propriedade da família, onde ele vê o pai, a governanta, o filho dela e outros personagens como invasores no que ele considera o seu espaço particular, o “seu castelo”. Daí o título do filme. Um título bastante intrigante.
Corta para os dias atuais. Local: qualquer jornal diário. O assunto: o nepotismo. Praga antiga, que desde a Roma Imperial vem empesteando a sociedade. Recentemente vimos o senador Sarney enrolado para explicar o emprego de funcionários fantasmas que por sinal eram parentes seus. Até namorado da neta mamava no Senado sem nunca ter ido lá. Já nos acostumamos a ver – e criticar duramente – principalmente no meio político essa prática infeliz.
Mas o que muitos ignoram, ou se recusam a ver, é que esse costume abominável chegou às nossas igrejas. Muitas igrejas têm-se desfiliado das convenções nacionais exclusivamente com o propósito velado de adotar essa prática nefanda.
Muitos de vocês nem eram nascidos nesse tempo. Há uns trinta anos ou mais, a grande maioria das igrejas evangélicas deste país era organizada em convenções. Havia a Convenção Batista Brasileira, chamada “tradicional”, e sua dissidência, a Convenção Batista Nacional, chamada “renovada”; mas ambas seguiam – e seguem – praticamente a mesma organização e métodos (inclusive já há quem defenda a re-união, assunto para outra postagem, em breve). Mas a Igreja Presbiteriana tem o seu Concílio, as Assembléias de Deus têm a CGADB e a Conamad, e assim por diante. Com algumas exceções, é claro, mas no geral as igrejas, que então eram sérias e evangélicas, funcionavam com muita organização. Um dos principais motivos era que dessa forma, a convenção geral ou nacional era quem escalava e distribuía os pastores pelas igrejas, fazendo um rodízio de tantos em tantos anos. Isso não deixava que eles viessem a ser idolatrados pelo povo, e se tornassem donos de igrejas.
Entretanto, há uns trinta anos, aproximadamente, começaram a surgir alguns movimentos estranhos. Algumas igrejas, principalmente as maiores e mais influentes, começaram a alegar motivos esdrúxulos e começaram a se desfiliar das convenções. Uma estranha coincidência é que nessa mesma época aparece, a princípio timidamente, depois com mais ousadia, o conceito de “cobertura”. Estranha por que não se pode entender que o pastor titular exija que os membros fiquem sob sua “cobertura” – um conceito por si só bastante discutível à luz das Escrituras – mas ao mesmo tempo saia de debaixo da “cobertura” da denominação. Ou seja, a “cobertura” só vale deles para baixo.
Mas tudo tem uma explicação, que nem sempre é clara, mas que com o tempo acaba vindo à tona.
O que aconteceu? Aconteceu que aquele pastor se tornava “dono” da igreja! Não tendo mais a quem prestar contas, não corria o risco de “fazer um bom trabalho” e depois ser substituído, deixando o aprisco para outro tomar conta. Agora ele era dono do redil; podia imprimir o seu ritmo, o seu estilo, até mesmo a sua interpretação particular, ou, como se tornou chavão, “a visão”.
Mas o efeito mais duradouro dessa mudança organizacional é de caráter prático. Eu comecei há muitos anos a detectar esse movimento e o chamei, na época, de feudalismo evangélico. Isso porque as igrejas não só passaram a ter donos, mas também herdeiros! Os pastores, sabiamente, ao perceberem que não durariam para sempre, trataram de cuidar da sucessão do que agora era seu feudo particular – lembre-se, não estavam mais sob a autoridade da convenção geral. Passou a ser o senhor do castelo, como o garoto do filme, e todos os outros passam a ser vistos como invasores em potencial daquele mundinho. E como todo senhor feudal que se preze, a possessão passa para a próxima geração, mas sempre na mesma família! Uma possessão vitalícia.
Senão vejamos. Faça uma breve pesquisa pelas maiores igrejas do país e verá que os pastores titulares são, pela ordem, o pastor (ou bispo, apóstolo etc.) Fulano de Tal; depois vem pastor Fulano de Tal Júnior, Fulano de Tal Filho, Fulano de Tal Neto e por aí vai. Isso quando não tem a pastora (ou bispa, ou apóstola etc.) Fulaninha de Tal, Beltranice de Tal, ou Cicrânia de Tal. Mas é sempre o sobrenome “de Tal”, igual ao do chefão.
Talvez a única exceção seja o “apóstolo” Doriel de Oliveira, cujo filho é deputado em Brasília e se chama Rubens César Brunelli Júnior, aquele mesmo da oração da propina. Opa, peraí? Se ele é filho do Doriel, e se chama Júnior, por que seu primeiro nome não é Doriel? Link aqui... Eu hein... Se alguém souber o que houve, por favor, nos avise, para não cometermos injustiças nem darmos informações incorretas. Enfim, somente como exemplo, seguem algumas fotos para que vocês nos ajudem com mais informações. Outro aspecto que caracteriza o feudalismo evangélico é que, assim como na Europa Medieval, muitas igrejas hoje tratam de produzir tudo aquilo de que precisam para a própria subsistência.
Começou com a venda de Bíblias e livros evangélicos. Até aí, tudo bem, nada contra. Mas logo surgiram lojinhas de bugigangas: chaveiros, adesivos, camisetas, marcador, discos, cds, dvds, e agora até calcinha tem. Virou um verdadeiro mercado persa. Se Jesus viesse visitar uma igreja dessas, talvez usasse o bom e velho azorrague no recinto.
Mas o feudo ia crescendo, e logo se abandonou o velho hinário, pois como ouvi um “pastor” justificar tal assassinato, “a linguagem é arcaica, ultrapassada; o pessoal não entende”. Com isso, foram suprimindo os hinos e aumentando o uso dos “corinhos” – que também acabaram desaparecendo com a adoção das músicas de cds dos “levitas”. De preferência os oriundos do próprio “ministério”. Os que têm mais recursos até se tornam conhecidos fora das fronteiras, e são cantados nos feudos vizinhos; com o advento da Internet, até em feudos distantes. De feudo para feudo. E nesse meio tempo, um estudiozinho para produzir as próprias músicas. Em si, isso não é ruim. O que não é bom é que o custo da produção cai, mas o preço final não... Um cd custa menos que R$5 para ser produzido, mas vai ver o preço da venda. Se fosse para o Reino de Deus, até daria pra engolir, mas é para o Feudo.
Edição de livros, a mesma coisa. O pastor escreve uma coisinha aqui, outra ali, daqui a pouco a igreja tem sua própria editora. Mesma coisa do estúdio, baixam-se os custos de produção, mas não o preço da venda. Mentalidade empresarial, ora, dirão os modernos.
Depois, surgiu outro malefício, o seminário próprio. Primeiro, um cursinho básico de especialização, de aprofundamento. Depois, com o crescimento natural da freguesia, acaba virando um “seminário” ao gosto do patrão, onde são enfatizadas as doutrinas que o senhor do castelo mais preza: prosperidade, exorcismo, regressão mental, batalha espiritual... raramente missões e evangelismo. Mais uma vez peço que você faça uma pesquisa, como eu fiz, e dê uma olhada nas matérias oferecidas. Compare com um seminário sério, um que seja reconhecido pelo MEC há mais de 30 anos, por exemplo.
Outras comparações podem ser feitas com o feudalismo, como por exemplo, a fragmentação da unidade anterior e a auto-suficiência de cada feudo; a palavra do senhor do castelo é a lei suprema; a administração da justiça própria àqueles considerados dissidentes; a formação de um cordão de puxa-sacos e parasitas; uma tropa de choque para cegamente defender o senhor a qualquer custo etc.
Mas, para não alongar demais a conversa, e por falar em livros, vamos terminar tratando de mídia.
É sem dúvida muito importante o uso da mídia, em todas as suas possibilidades, para a evangelização, missões, edificação pela pregação da Palavra de Deus. Sou totalmente a favor do rádio, da TV, do cinema, dos jornais, livros, folhetos, revistas. Internet, blogs, e-mail (sem spam, por favor), twitter, torpedos, e o que mais ainda for inventado. O que eu sou contra é o uso dessas ferramentas para promoção
própria, enriquecimento pessoal e/ou divulgação de doutrinas particulares! Igrejas com canais de TV? Isso era o sonho de toda uma geração de cristãos bíblicos! Resta ver se o conteúdo presta. Programas de culinária (ao lado)? Programas de moda? Transmissão ao vivo de raves gospel? E isso é o que vemos hoje em canais ditos “cristãos”. Mais uma vez, felizmente, com honrosas, mas poucas, exceções. E quando a mídia resulta mais em glorificação do feudo e do senhor do castelo do que de Deus, aí podemos de fato desconfiar de que quem manda é o senhor feudal, com vistas à perpetuação do seu poder.
E de sua dinastia, PER OMNIA SAECVLA SAECVLORVM.

Depois, quando o pessoal diz que há uma mentalidade medieval permeando certos rincões do cristianismo atual, tem gente que reclama.